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Trabalhar no roteiro de uma obra durante anos, com estrutura e liberdade criativa para pesquisar e escrever, é uma raridade entre profissionais da área no Brasil. Selton Mello, Fernanda Torres e Walter Salles.
Reprodução/TV Globo
Indicado ao Oscar, premiado no Globo de Ouro pela atuação de Fernanda Torres e no Festival de Veneza pelo roteiro, “Ainda Estou Aqui” demorou sete anos para ser idealizado, escrito e reescrito pelos autores Murilo Hauser e Heitor Lorega, antes do início das filmagens. Vencedor do Urso de Prata em Berlim em fevereiro deste ano, “O Último Azul” levou mais de dez anos para ser gestado e roteirizado pelo cineasta Gabriel Mascaro.
Hauser e Mascaro contaram à BBC News Brasil como foi o processo criativo para chegar ao roteiro que culminou nos dois filmes premiados. “Foram mais de dez anos investigando o tema do etarismo. Durante esse período, escrevi inúmeros roteiros completamente distintos entre si. Só no último roteiro é que senti vontade e segurança para filmar”, relata Mascaro, que escreveu em parceria com o músico Tibério Azul e contou com a consultoria de Hauser e Lorega. “Foi uma jornada longa, cansativa, mas muito fresca, prazerosa e gratificante.”
No caso de Ainda Estou Aqui, o convite do diretor Walter Salles para pensar em um roteiro a partir do livro de Marcelo Rubens Paiva veio em 2016. Salles reuniu um grupo de artistas por mais de um ano para desenvolver diferentes projetos e trocar impressões sobre eles.
“Durante esse tempo, Walter e eu pudemos compartilhar as propostas dramatúrgicas que estávamos pensando e ouvir impressões sobre elas, assim como acompanhar a jornada de outras narrativas de diferentes gêneros e formatos que nasciam ali. Essa polinização cruzada acredito que só fortaleceu os filmes”, afirma Hauser, que, junto com Lorega, escreveu o primeiro tratamento do roteiro em 2018.
Dali até a filmagem foram mais cinco anos de pesquisa, escrita e reescrita — e a interlocução com a equipe e o elenco seguiu durante os ensaios, as gravações e a montagem.
Trabalhar no roteiro de uma obra durante anos, com estrutura e liberdade criativa para pesquisar e escrever, é, no entanto, uma raridade entre profissionais da área no Brasil. Roteiristas e associações que representam o ofício se queixam de um mercado precarizado, com contratos desfavoráveis, baixa remuneração, desrespeito à propriedade intelectual e outras práticas de desvalorização profissional.
O advento da inteligência artificial, a escassez de editais públicos para etapas anteriores às filmagens e a demora para a regulamentação do mercado de streaming — o chamado VoD (video on demand, ou vídeo sob demanda) — são elementos que tornam esse cenário ainda mais desafiador.
“Na minha experiência, é uma exceção poder desenvolver um projeto por tanto tempo, com condições de trabalho e estrutura de produção que acolhem os autores e suas ideias e propostas”, diz Hauser. “Na maioria dos casos há uma enorme pressão em relação ao tempo de escrita, que precisa ser cada vez menor, e uma falta de qualidade na leitura dos materiais.”
Ele cita outra queixa comum de profissionais da área: a falta de continuidade dos trabalhos nos quais se envolvem. “Como o nosso mercado é influenciado por ondas de produção que fogem do nosso controle, todos os roteiristas que conheço já passaram por situações em que perderam o trabalho em projetos que foram descontinuados da noite para o dia”, relata.
Segundo o autor, as equipes de desenvolvimento (roteiro) dos canais e das plataformas de streaming estão cada vez mais enxutas e sofrem mais pressões para performar, “impossibilitando um diálogo criativo rico o suficiente para que seja capaz de nutrir o processo de maneira construtiva”.
“Isso pra mim é difícil de entender, pois investir em desenvolvimento de roteiro é a maneira mais econômica de fazer um filme crescer. É muito menos oneroso para a produção bancar pesquisa, consultorias e mais tratamentos de roteiro do que ter que parar a filmagem, refilmar cenas ou reinventar o filme na pós-produção”, afirma.
Menos de um terço consegue viver da profissão
Um levantamento divulgado pela Abra (Associação Brasileira de Autores Roteiristas) no fim do ano passado, do qual participaram 559 roteiristas associados à entidade, mostrou que apenas 27,5% conseguem viver exclusivamente do trabalho com roteiro. A situação é pior do que em 2022, quando a pesquisa também foi realizada e 35,2% responderam o mesmo.
Nesses dois anos, a porcentagem dos que trabalhavam em regime CLT, que já era baixa (10,5%), caiu para 5,5% e aquelas que atuam como PJ (pessoa jurídica) em vagas fixas baixou de 13,1% para 8,8%.
Questionados sobre as dificuldades enfrentadas no dia a dia do trabalho, os autores citaram três principais queixas: remuneração inadequada, escassez de postos de trabalho e contratos considerados injustos. Não se sabe quantos roteiristas existem no país, mas pela Abra já passaram cerca de 1.500.
Mesmo admitindo que se trata de uma indústria que tradicionalmente atua por projetos, André Mielnik, presidente da Abra, cita como um exemplo de precarização o modelo de remuneração para o profissional, frequentemente por entrega ou por aprovação. O adequado, segundo ele, seria o pagamento mensal ou semanal, dentro de uma sazonalidade previsível.
“O pagamento por aprovação basicamente funciona assim: ‘se eu não gostei do que você escreveu, eu vou devolver e você vai escrever do jeito que eu quero e só assim você vai ser pago’. É o pior [sistema] de todos. São muitos os relatos de roteiristas que recebem por aprovação que estão endividados ou não conseguem dormir, relaxar, porque estão o tempo todo sob uma pressão intensa para conseguir receber e pagar as contas”, acrescenta.
De acordo com o presidente da Abra, o problema foi intensificado pela chegada das plataformas de streaming ao país, em 2013, ainda que já existisse antes disso. “O streaming puxa toda a força de trabalho para si e aí começam a aparecer um monte de aberrações. O que antes acontecia em um ou outro caso passa a ser generalizado”, afirma.
Outro dado da pesquisa é que 40% dos roteiristas disseram ter tido seus nomes omitidos nos créditos das obras ou creditados de forma equivocada ou injusta. “Os direitos de criação das obras são constantemente vilipendiados”, diz Mielnik. “Muitas vezes, por vaidade, pessoas que são ótimas articuladoras, produtoras ou diretoras, mas que não se sentam para escrever, querem colocar seu nome como criadoras. No audiovisual, as fronteiras são turvas.”
Formado em Letras com habilitação em língua portuguesa e em linguística e mestrado em literatura africana, Emil Moreira, de 42 anos, fez seu primeiro curso de roteiro em 2016. Hoje, ele consegue viver do ofício trabalhando com vídeos educacionais e para as redes sociais, mas enfrenta dificuldades para entrar no mercado de cinema e TV.
Moreira frequenta eventos do setor, paga valores que chegam a milhares de reais para participar de laboratórios e rodadas de negócios e presta seleções para vagas de assistente de roteiro. “Entrei nessa área pensando nisso e realmente estou investindo”, afirma. “Mas há poucas vagas e não falta mão de obra qualificada. Caí no discurso de que faltam roteiristas bem preparados no Brasil, mas não é verdade. A indústria do audiovisual nunca engrena, sempre vai sendo destruída no meio do caminho.”
Enquanto isso, ele roteiriza vídeos para cursos e criadores de conteúdo das redes sociais, mas reclama da desvalorização da atividade e do baixo poder de negociação, citando que alguns clientes querem pagar apenas R$ 30 por trabalho.
“O roteirista é PJ, mas na verdade é um trabalhador sozinho em um mercado que passou por uma ‘uberização’. Tem contratos que são draconianos. Tenho colegas que venderam o carro para trabalhar em séries. Depois aquela obra fica sendo explorada infinitamente e você não ganha em cima dela.”
Moreira se refere à falta de remuneração dos autores pela exibição de suas obras, que é outra grande reivindicação dos roteiristas brasileiros. A prática, existente em países como Argentina, México, Chile, Itália, Portugal, Espanha e Suíça, está prevista em dois projetos de lei no Congresso Nacional: o PL 2370/19, que tramita na Câmara, e o PL 4968/24, no Senado.
O valor seria arrecadado diretamente pelos autores ou por sociedades de gestão coletiva de direitos autorais e distribuído de acordo com o número de exibições da obra —semelhante ao que já ocorre com os compositores em relação ao Ecad.
Outra preocupação dos roteiristas, que é comum a jornalistas, escritores e outros detentores de direitos autorais, é de serem remunerados quando suas obras forem utilizadas para treinar sistemas de inteligência artificial. A proposta está contemplada em outro projeto de lei, o PL 2338/23, aprovado pelo Senado no fim de 2024 e que agora está sendo apreciado na Câmara.
“Muitos roteiros foram minerados e utilizados como base para treinar esses modelos de inteligência artificial generativa. As empresas precisam pagar para usufruir desses dados”, afirma Mielnik, da Abra.
Inquérito
Após denúncias da Abra, o Ministério Público do Trabalho (MPT) do Rio de Janeiro abriu um inquérito civil, em setembro de 2024, para investigar as condições de trabalho dos roteiristas que escrevem para serviços de streaming como Netflix e HBO. Dois anos antes, a associação havia feito um pedido de mediação dessas relações contratuais diretamente com as plataformas, que não quiseram negociar.
Como a contratação desses profissionais acontece por meio de produtoras, são elas as investigadas no inquérito. “Tecnicamente, não existe uma relação jurídica entre os roteiristas e as plataformas de streaming. É uma relação triangular. O que está sendo sugerido é que haveria responsabilidade delas na cadeia de produção, que é uma teoria jurídica um pouco mais arrojada”, afirma o procurador Cassio Casagrande, responsável pelo caso.
O procurador diz ter notado, na fase inicial do inquérito, um padrão na forma como os roteiristas são contratados. “Na visão deles, existe uma situação desvantajosa, em que os contratos já vêm prontos, sem possibilidade de negociação de fato, sem multa por rompimento do contrato e com exigência de exclusividade sem remuneração por isso, por exemplo”, diz.
Casagrande já colheu depoimentos dos responsáveis por essas empresas, ouviu a manifestação da Abra e agora aguarda o envio dos contratos para verificar se há possibilidade de atuação do MPT. O prazo para conclusão desse tipo de processo é de dois anos, com possibilidade de prorrogação.
Editais pré-filmagem
Outro gargalo citado por roteiristas é a escassez de fomento público para essa atividade. Desde 2018, não há editais do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) específicos para o desenvolvimento de roteiros, por exemplo.
Mesmo antes disso, de 2014 a 2018, menos de 6% dos recursos do FSA foram direcionados a editais de desenvolvimento, enquanto a produção (a realização de um filme ou série) recebeu 63% da verba, como mostram as pesquisadoras Ana Paula Sousa e Maria Marta Pinto na publicação “Desenvolvimento de Impacto”, lançada em outubro de 2024 pelo Projeto Paradiso com o Hubert Bals Fund.
Em 2014, o ano em que mais se investiu em desenvolvimento no país, foram disponibilizados, para essa etapa específica, R$ 47 milhões. “Para se ter uma ideia do que isso significa, em 2022, o Creative Europe, programa de financiamento da União Europeia de apoio aos setores criativos, investiu 15% do orçamento destinado ao audiovisual em linhas de desenvolvimento, totalizando 55,5 milhões de euros”, compara a publicação.
Com o fim da pandemia e do governo Bolsonaro, quando os recursos do FSA voltaram a ser liberados, o foco voltou-se totalmente para o que acontece a partir das filmagens, e não antes. “Há, no setor da produção, a percepção de que o poder público ainda tem certa resistência a investir em desenvolvimento pelo fato de o aporte não necessariamente levar a uma obra”, afirmam Sousa e Pinto na pesquisa.
Roteiristas, porém, argumentam que investir em roteiro é uma forma de reduzir o risco de produções audiovisuais. “Financiar uma boa escrita não é um ‘custo extra’, mas um investimento inteligente”, argumenta Gabriel Mascaro, de O Último Azul. “O roteiro é o coração pulsante de um filme. Claro, muita coisa se transforma na montagem, mas há uma paz criativa enorme em chegar ao set com um roteiro sólido e vibrante. Foi o que aconteceu neste filme, e essa segurança me permitiu tatear no inesperado que surgia no momento da filmagem com ainda mais liberdade, porque já tinha a base do roteiro sedimentada.”
Diretor dos filmes que escreve, Mascaro seguiu um caminho mais autoral, buscando financiamento por meio de fundos estaduais, grants internacionais e residências artísticas.
Mas ele pondera que esse modelo prioriza diretores que escrevem e diz que sente falta de iniciativas focadas no desenvolvimento de roteiristas. “Um roteiro forte nasce de um processo longo e profundo. O desenvolvimento não é um luxo, mas uma necessidade para que o cinema siga sendo um espaço de invenção”, afirma.
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