Autoras refletem sobre a presença feminina na literatura e o mercado editorial no Oeste Paulista


Nathalie Rezende, de Presidente Prudente (SP), e Nicolly Bueno, de Presidente Venceslau (SP), compartilharam com a reportagem do g1 suas histórias e conquistas como escritoras. Nathalie Rezende (à esquerda), de Presidente Prudente (SP), e Nicolly Bueno (à direita), de Presidente Venceslau (SP)
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Caro e gentil leitor, nesta quarta-feira (23), em que se celebra o Dia Mundial do Livro e do Direito do Autor, é necessário voltar a atenção a um tema tão encantador quanto necessário: a presença e a importância das mulheres no mercado literário.
Esse parágrafo poderia facilmente se assemelhar a uma conhecida narradora de uma série de romance exibida em uma plataforma de streamming, mas, assim como ela é conhecida por retratar histórias e acontecimentos locais, a reportagem do g1 conversou com duas autoras da região de Presidente Prudente (SP), que compartilharam suas vivências e, como diria a poetisa Emily Dickinson (1830-1886), escreveram sobre esperança, amor e corações que perduram.
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Seja na poesia ou em romances de época, Nathalie Rezende, de Presidente Prudente (SP), e Nicolly Bueno, de Presidente Venceslau (SP), descrevem sua forma de ver o mundo através das palavras, que fazem com que o leitor se sinta da forma em que pensaram, desejaram, sentiram e, até mesmo, sonharam. Desta forma, mais do que uma simples encadernação, as obras demonstram o quanto as escritoras vivem e respiram palavras, mostrando que os livros podem significar sonhos, aprendizado, refúgio e grandes conquistas.
Nathalie Rezende, de Presidente Prudente (SP), tem livros publicados nas formas física e digital
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Escrita à moda antiga 📖
Nathalie contou ao g1 que sempre teve muito amor pela leitura, sendo incentivada por um professor de português ainda na quinta série.
“Eu percebi que eu precisava me expressar de alguma forma, expressar as ideias que eu tinha, então, eu comecei a escrever. Então, eu ainda tenho os rascunhos de quando eu era criança. Mas, eu tinha 20 anos quando eu comecei mesmo, quando eu comecei a escrever uma história inteira, completa”, detalhou a professora e autora de romances de época.
Para a escrita de um livro, principalmente, se tratando de um romance que ocorre em outro período, é necessário realizar uma imersão sobre o assunto. Por isso, além de ler muito, ela procura sempre pesquisar sobre as vestimentas e os costumes da época para “poder escrever com um pouquinho mais de propriedade”.
“Eu gosto muito de escrever sobre romance, principalmente de época, gosto de ler desse mesmo gênero, mas sempre li de tudo. Comecei baseada nos livros da Agatha Christie [1890-1976] e da Jane Austen [1775-1817], foram as minhas escritoras de base”, contou ao g1.
Nathalie Rezende se dedica à escrita de romances de época
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O primeiro livro publicado por Nathalie foi “Uma lady e nada mais” (2021), publicado por uma editora do Rio de Janeiro (RJ).
A professora também contou que suas inspirações são, geralmente, livros, filmes e séries.
Além de buscar personagens que são consideradas mulheres fortes e independentes para aquele período histórico, uma vez que, “precederam a realidade de hoje”.
Conforme a autora, a editora a procurou e entrou em contato depois que publicou o livro no formato digital e teve muitas leituras.
“Ele [o livro] significa muito para mim, de forma pessoal, porque você vê uma história que era da sua cabeça, que você pensou nos personagens, você pensou em toda a história, vendo ela ali, na sua mão, você lendo, é muito gratificante”, afirmou ao g1.
Nathalie gosta de protagonistas que são consideradas mulheres fortes e independentes
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Nathalie também reforçou que tem dois livros publicados digitalmente por ela e cinco pela editora, como a sequência da obra e outros títulos.
“O livro que eu escrevi que mais marcou meu coração foi ‘A mercê do destino’ (2023), é um livro sobre viagem no tempo, que escrevi a partir de um sonho que tive. Então, foi no momento da pandemia, a gente estava naquela solidão, todo aquele momento difícil. Eu tive esse sonho e escrevi sobre ele. Então, ele foi um livro que me marcou muito. É o meu livro do coração”, contou Nathalie.
“Quando eu peguei meu primeiro livro, nossa, eu fiquei tão emocionada. E o feedback das pessoas, era assim, ‘Nossa, eu não paro de pensar na sua história’, ‘O que acontece depois?’, ‘Tinha que fazer uma série desse livro, eu não paro de pensar nele’, é muito gratificante”, completou ao g1.
Ela ainda contou que o cenário de uma autora no Oeste Paulista “praticamente não existe, porque é difícil escutar falar sobre isso”.
“Aqui, na nossa região, [os autores] não parecem ter muita valorização, as pessoas até se surpreendem ‘Nossa, você é escritora’, e é bem difícil mesmo”, afirmou.
Nathalie também acrescentou que, para uma mulher se destacar como autora na região de Presidente Prudente, sua obra, geralmente, está relacionada a estudos acadêmicos ou a nichos específicos de público.
“Coisas literárias são mais difíceis, não tem tanta repercussão, você não escuta falar tanto”, completou ao g1.
A professora destacou que, se pensar financeiramente, é difícil viver da literatura.
“Você ganha uma porcetagem ínfima, você ganha lá seus 10%, sendo que foi você que escreveu todo o trabalho. Então, é difícil se você for viver disso. Eu sou professora, sou concursada, [escrever] começou como um hobby para mim, mas, claro, que se pudesse viver disso, eu viveria. Se tivesse mais tempo para me dedicar a isso. Uma editora local seria maravilhoso. Uma região com tantas pessoas inteligentes, tantas pessoas com histórias para contar, ter uma editora aqui seria muito importante para a valorização desse trabalho que, infelizmente, não é tão visto com tanta importância”, pontuou a autora.
Nathalie Rezende já participou da Bienal do Livro, no Rio de Janeiro (RJ)
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Nathalie conseguiu que seu trabalho fosse reconhecido por muitos leitores e participou da Bienal do Livro, no Rio de Janeiro, onde conseguiu expor e conversar sobre suas obras.
“Foi um sonho. Nunca imaginei que as pessoas poderiam procurar por meus livros, saber mais sobre as histórias. Foi emocionante ter esse retorno”, contou ao g1.
Ela ainda destacou que sentiu que rompeu uma barreira muito grande, “ainda mais vindo de uma família que a leitura, a escrita e, até mesmo os estudos, não são tão presentes”.
“A importância de todo trabalho de uma mulher é mostrar que as mulheres podem, sim, fazer o que elas quiserem. Eu, sendo mãe de duas filhas, trabalhando fora, é muito difícil conciliar, mas nem por isso eu deixei de tentar. É preciso ser mudado a valorização [do trabalho] mesmo, a visibilidade da importância de mostrar que ‘Olha, é da região. Ela escreve isso’. Essa visibilidade seria importante”, concluiu ao g1.
Nicolly Bueno no lançamento de ‘Sou humana: deixe-me ser’, em junho de 2020
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A vida exige a escrita 📚
Diferente de Nathalie, Nicolly Bueno relatou ao g1 que, quando criança, não tinha contato com os livros. Essa realidade apenas mudou para a escritora e editora quando iniciou os estudos no magistério.
“Vivi uma infância muito pobre, de modo que não adquiri o hábito de ler. Na escola, lia apenas o necessário para as avaliações bimestrais. Quando iniciei os estudos do magistério, uma professora chamada Rosa Marin foi quem despertou-me o gosto pela leitura e escrita. Ela me incentivou a participar de um concurso literário e naquele ano fui premiada em segundo lugar. Eu tinha 15 anos quando recebi o meu primeiro prêmio”, compartilhou Nicolly.
“Comecei a escrever para ganhar prêmios e fama. Achava que participar dos concursos literários e vencer era uma maneira de me sentir amada e admirada pelos colegas e familiares. Isso nada mais é do que uma necessidade da adolescência. Após o meu primeiro prêmio não parei de escrever e publicar em jornais”, completou.
Além disso, ela completou que teve sua carreira iniciada ao escrever artigos de opinião para um jornal de Presidente Venceslau, contos e poesias.
“Costumo dizer aos meus alunos que a poesia cura qualquer mal estar. Se estou triste leio poesias, se estou alegre leio poesias, se estou angustiada eu leio poesias. É a arte de reencontrar nossos sentimentos nos versos escritos. A poesia permite ao leitor uma conexão com o seu eu. Poesia, para mim, é um remédio que proporciona a sensação de felicidade, um estado de êxtase”, afirmou Nicolly.
O primeiro livro publicado pela autora foi uma antologia de poesias com obras de autores da região, com o título “Outonos”, publicado no ano de 2023.
Já o seu primeiro livro solo foi publicado em 2004 e se chama “Emoções”. Trata-se de um livro com textos que já tinham sido publicados em jornais sobre os dilemas da adolescência.
‘Quanto vale uma ilusão?’, de Arlinda Garcia Marques, foi datilografado há mais de 40 anos e editado por Nicolly
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Como se os livros pudessem ser honestos com ela, e Nicolly com eles, a editora disse ao g1 que publicou livros de diferentes estilos, como contos, crônicas, poemas e literatura infantil, além de estar escrevendo um romance desde 2018.
“Não escrevo quando quero, mas quando a vida exige de mim. É como se a escrita fosse uma necessidade, um alimento para a mente, um bálsamo para a alma. Todos os meus livros surgiram de momentos muito dolorosos, angustiantes e repletos de descontentamento com a vida, com o mundo e com as pessoas”, refletiu.
“Gosto de escrever sobre sentimentos, assuntos relacionados à vida cotidiana e temas polêmicos. Em geral, escrevo para opinar, para me revolucionar. A escrita é uma necessidade minha. Nunca pensei em escrever para o outro. Às vezes escrevo e depois jogo fora”, afirmou ao g1.
Ao g1, a professora contou que todos os seus escritos são inspirados na vida.
“Os temas surgem do inesperado, do acaso mesmo. Mas posso afirmar que os escritores que inspiram a minha maneira de escrever são Clarice Lispector [1920-1977], Fernando Pessoa [1888-1935] e Florbela Espanca [1894-1930]. São escritores complexos com os quais eu me identifico muito”, explicou.
O livro que mais lhe marcou foi “Quando o amor supera a dor”, o qual a autora lançou em um momento de felicidade na vida amorosa, após anos de sofrimento.
“Escrevia para deixar de sofrer, para aliviar a dor que o amor ou a falta dele me causavam. Todas as pessoas querem amar e ser amadas. Fiz muita terapia e análise para aprender a me amar em primeiro lugar. Uma pessoa que não se ama não consegue amar mais ninguém e nem pode esperar que outra pessoa a ame. O amor próprio é fundamental e só o autoconhecimento nos permite entender isso. É, talvez, um desafio para a vida toda”, refletiu ao g1.
Para ela, cada lançamento é uma alegria diferente.
“É a sensação de ganhar um prêmio. É resultado de uma superação. Não basta só ter a ideia e ter o dinheiro para custear as despesas. É preciso ter coragem. O livro publicado deixa de ser do escritor e passa a ser do leitor. Sem coragem os textos ficam na gaveta ou no computador”, destacou a autora.
Nicolly no lançamento da antologia ‘Memórias do Coração’, livro organizado por ela e pelos alunos
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Além disso, ela compartilhou que gosta quando alguém diz que já leu algo que escreveu.
“Mas felicidade plena é poder encantar crianças com as nossas palavras, nossos versos. Tenho projetos para o público infantil. Estou nessa fase de querer me comunicar com as crianças porque elas são puras, curiosas e perspicazes”, disse ao g1.
Nicolly também pontuou que a maior dificuldade para qualquer autor não famoso, é a financeira, uma vez que “livros custam uma quantia razoável e arriscada. O retorno é lento. Escrever é empobrecer alegremente”, definiu.
“Temos bons escritores em nossa região, mas, infelizmente, as pessoas não têm o hábito de comprar livros. Fico muito triste quando alguém fala que comprou livro e-book. Tenho uma biblioteca bem diversificada e acredito que a tecnologia não substitui o prazer de se ter uma obra impressa. Ainda faltam investimentos e políticas públicas para escritores e a prática de projetos de leitura”, destacou.
Além disso, ela explicou que editoras comerciais raramente publicam livros de autores desconhecidos e a maioria precisa pagar pela publicação e depois vender o seu próprio livro.
“Com os editais dos programas de Cultura, algumas pessoas conseguem ter projetos de publicação aprovados e os custos pagos com recursos públicos. Mas isso ainda é pouco. Infelizmente, conheço muitas pessoas que escrevem mas não publicam por falta de recursos financeiros”, relatou ao g1.
“Uma editora comercial não investe em autor que não tem fama porque o objetivo da editora é lucro. Os autores acabam investindo em seus sonhos e se contentando com a venda de livros para colegas e familiares. A última pesquisa Retratos da Leitura no Brasil trouxe índices alarmantes de pessoas que não gostam de ler e não compram livros. Vivemos, infelizmente, em um país de não leitores”, completou.
Livros que Nicolly Bueno já publicou como editora e autora
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Nicolly também é dona de uma editora local em Presidente Venceslau e iniciou seus trabalhos em 2013, quando “uma amiga bem idosa e autora de vários romances não publicados queria lançar seus livros”.
“Foi ela quem me incentivou. Na época, eu já tinha experiência com edição de livros, pois havia trabalhado como editora de texto para a Editora Letras a Margem e comecei a editar para fazer minha amiga feliz. Ela faleceu em 2019, mas tive o privilégio de publicar dois romances dela”, destacou ao g1.
Ao todo, Nicolly publicou 11 livros como autora e 13 obras como editora de escritores independentes.
Com isso, ela explicou que uma editora local torna o processo burocrático de uma publicação mais viável.
“A proximidade da editora com o autor facilita a edição e diminui os custos. Hoje já é possível fazer livros sob demanda, com pequenas tiragens, a partir de 50 exemplares. O pagamento também é facilitado e o autor tem a oportunidade de acompanhar tudo de perto e participar do processo desde o início até a noite de autógrafos”, explicou.
Nicolly Bueno lançou o livro infantil ‘Duas mamães de Anita’, pela editora Metanoia
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Nicolly ainda refletiu sobre as dificuldades das mulheres em entrar no mercado editorial.
“O mercado editorial ainda é dominado pelos homens. Grandes autores dependiam de editores homens para terem suas obras publicadas. Mas a tecnologia e as redes sociais trouxeram maior visibilidade às mulheres. Eu, particularmente, acho que as crianças e adolescentes precisam escrever mais. Sou professora de ensino fundamental e acredito que o futuro repousa na infância. Foi por este motivo que criei o Projeto Escritores Mirins. O livro é um porta voz. As mudanças sociais acontecem de diversas maneiras e a escrita sem dúvidas é uma delas. Dizer que a palavra tem poder não é clichê. A arte da escrita é a arte da transformação, seja ela pessoal ou social”, contextualizou.
Ela também destacou que é necessário a criação de mais políticas públicas para incentivar a leitura e a escrita.
“As escolas, de modo geral, têm desenvolvido bons trabalhos para a formação do leitor, mas percebo que muitos professores não são leitores. Não tem como incentivar algo que eu não gosto e não pratico. O gosto pela leitura na escola tem que começar pelo professor. O prazer de ler se adquire lendo sem imposição, sem pressão por notas bimestrais. A leitura precisa fazer sentido na vida do leitor”, finalizou ao g1.
‘Quando o amor supera a dor’ foi o livro que mais marcou Nicolly
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Ao refletir sobre a trajetória de Nathalie e Nicolly, é possível perceber que, mesmo que o cenário editorial ainda seja dominado por homens, uma mulher consegue encontrar uma maneira de atravessar as cortinas mais espessas.
As autoras têm provado, uma página de cada vez, que sua voz é não apenas necessária, mas insubstituível.
Assim, ao escolher sua próxima leitura, caro leitor, convido-o a virar a capa e observar o nome que a assina. Talvez você descubra, como tantos já descobriram, que as letras mais poderosas muitas vezes brotam de mãos femininas.
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