
Apesar das dificuldades e da escassez de recursos, Zuíla seguiu os ensinamentos da mãe de que por meio dos estudos ela poderia transformar sua realidade e seguiu em frente. A santarena Maria Zuíla Lima Dutra, desembargadora do TRT8
Reprodução / Facebook
Referência no combate ao trabalho infantil no estado do Pará, a santarena Maria Zuíla Lima Dutra, 70 anos, desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (TRF8) teve uma infância pobre, precisou vender lanche em fábricas e buscar pedras em pedreiras do município de Santarém, para ajudar a mãe Oscarina nas despesas de casa.
A mãe, que sempre foi a grande inspiração de Zuíla Dutra, precisou batalhar muito para criar os cinco filhos sozinha. E mesmo diante de tantas dificuldades e sem estudo, dona Oscarina nunca abriu mão de ter os filhos junto dela, enquanto muitas mães permitiam que suas crianças fossem morar com outras famílias na condição de “filhos de criação”, como se fossem da família, com a promessa de estudo e uma vida, melhor, a mãe de Zuíla fazia lanches, que a menina e um irmão vendiam.
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Em 2016, em uma entrevista à BBC, Zuíla Dutra contou que não tem lembrança de algum período da infância em que ela não estivesse trabalhando.
“Comecei muito cedo. Cinco anos? Talvez menos. Eu era muito pequena. Éramos muito pobres. Minha mãe, Oscarina, analfabeta, não tinha profissão definida, lavava roupa, fazia todo tipo de serviço. Morávamos de favor no fundo do quintal de uma fábrica de beneficiamento de látex, num canto sem água nem luz. Então consentiram que ela fizesse merenda para vender nas fábricas, e eu e meus irmãos vendíamos. Eu me lembro perfeitamente: um levava o tabuleiro com suco, outro os sanduíches”, contou.
Zuíla Dutra com sua mãe Oscarina
Arquivo pessoal
Para estudar, Zuíla Dutra precisou ter muita força de vontade. Acordava de madrugada todos dias para vender cedinho os lanches que a mãe preparava. Ia pra escola e à noite, como a casa onde morava com a mãe os irmãos não tinha energia elétrica, ela recorria à luz de lamparina.
Com poucos recursos, a família precisava improvisar o material escolar. Por muitas vezes, Zuíla pediu às colegas os restos dos cadernos delas. Ele levava as folhas em branco para sua madrinha, que costurava tudo com capricho e fazia pequenos cadernos para que ela pudesse copiar os conteúdos escolares.
Apesar das dificuldades e da escassez de recursos, Zuíla seguiu os ensinamentos da mãe de que por meio dos estudos ela poderia transformar sua realidade e seguiu em frente.
Ingressou na primeira graduação em 1971, no curso de Licenciatura em Ciências Exatas e Naturais pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Em 1990, ingressou no curso de Direito na Universidade da Amazônia, depois vieram especializações em Direito das Relações Sociais pelo Centro de Ensino Superior do Amapá e em Juízo Conciliatório (Enamat).
Em 2006, concluiu o Mestrado em Direitos Fundamentais e das Relações Sociais pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Naquela ocasião, defendeu a tesa: “Meninas Domésticas, Infâncias Destruídas: legislação e realidade social”, publicada em livro no ano seguinte, em que analisa as trajetórias de meninas saídas do interior paraense para trabalhar na casa de terceiros na capital, Belém.
Desembargadora Zuíla Dutra (à direita)
Anamatra / Divulgação
Segundo a desembargadora, não é raro, nas audiências, os empregadores negarem veementemente a relação de trabalho, com as jovens que trabalham nas casas deles, alegando tratar-se de filha de criação.
“Mas as provas demonstravam claramente a existência de autêntico vínculo laboral (relação de trabalho) e, mais ainda, de superexploração de trabalho. Esse tipo de explorador de mão de obra doméstica utiliza a expressão ‘filha de criação’ como substitutivo para ‘trabalho escravo’, ‘trabalho servil’ e outros assemelhados”, afirmou ela.
Persistência
Zuíla percorreu um longo caminho até realizar o sonho de ser juíza. Aos 16 anos, ela passou em um concurso público para telefonista. Depois foi professora de matemática e, também, funcionária do Banco do Brasil.
No início da década de 90, após conseguir ingressar no curso de Direito, em Santarém, mudou-se com a família para Belém, onde se formou e se tornou juíza. Na magistratura, fez do combate ao trabalho infantil uma das missões de sua vida profissional.
Zuíla Dutra sempre foi muito dedicada durante o percurso acadêmico, destacando-se com excelentes notas e comprometimento no processo de aprendizado sobre o Direito. Quem acompanhou essa trajetória de perseverança é só orgulho da ex-aluna.
“A Zuíla Dutra foi minha aluna, brilhante, no Curso de Direito da Universidade da Amazônia. Integrei a Comissão Julgadora no seu Concurso Público de Provas e Títulos para ingresso na magistratura trabalhista de carreira, em que obteve o 1° lugar. Foi minha colega de magistratura no Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, onde atualmente exerce o relevante cargo de Corregedora Regional, a Zuíla Dutra é escritora, professora, orgulho da Justiça do Trabalho”, disse o desembargador aposentado, José Malheiros da Fonseca.
Desembargadora Zuíla Dutra durante ação do projeto Judiciário Fraterno, em Santarém
MPPA / Divulgação
Combate ao trabalho infantil
Para a desembargadora, um dos maiores desafios no combate ao trabalho infantil doméstico é que ele acontece dentro das casas de família e é culturalmente aceito como um ato de solidariedade ou uma chance de ascensão social.
“A rotina da trabalhadora doméstica infantil é outra. O mais comum é que a menina se afaste da família, abandone a escola ou pouco possa estudar, e ainda seja cotidianamente submetida a jornadas longas, sem folga semanal e com salário abaixo do mínimo legal. Além disso, enfrenta riscos que vão desde acidentes domésticos até o assédio sexual dos patrões”, alertou.
Meninas são as maiores vítimas do trabalho infantil doméstico. Vão morar em casas de família com a promessa de um futuro promissor, com estudo garantido, mas acabam sendo exploradas com jornadas extenuantes para os afazeres da casa ou do trabalho como babás, por vezes sem folgas para visitar a famílias, e muitas acabam abandonando os estudos. Para alertar as famílias, para que suas crianças e adolescentes não sejam vítimas desse tipo de exploração, a desembargadora leva informação às escolas e comunidades por meio de palestras e projetos.
Zuíla Dutra (à esquerda) empunha o catavento símbolo do combate ao trabalho infantil com a juíza do Trabalho Vanilza Malcher
Reprodução / Facebook
A desembargadora integra a Comissão Nacional de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem do Tribunal Superior do Trabalho e coordena idêntico grupo no TRT da 8ª Região.
Recentemente, Zuíla Dutra recebeu a notícia de que o trabalho realizado pela Comissão de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo à Aprendizagem do TRT8, é 1⁰ lugar no Prêmio de Responsabilidade Social do Poder Judiciário e Promoção da Dignidade, categoria Promoção do Trabalho Decente.
Acreditar nos sonhos
Engavetar os seus sonhos nunca foi opção para a desembargadora Zuíla Dutra. Contrariando as estatísticas e adversidades, ela acreditou que era possível ser juíza: perseverou, estudou e realizou.
Em palestra proferida em junho de 2016 para adolescentes de 14 a 17 anos, estudantes de escolas públicas dos bairros belenenses da Pedreira e Telégrafo, Zuíla Dutra deu seu próprio exemplo de menina pobre, vivida em Santarém, para incentivá-los a não desistirem dos seus sonhos.
Zuíla Dutra conta a própria história como exemplo para incentivar a juventude a não desistir dos seus conhos
Reprodução / Facebook
“Sonhem, sonhem, acreditem em vocês! Eu fui trabalhadora infantil, nas suas piores formas. E se naquela época alguém comentasse que um dia eu seria uma desembargadora do Trabalho, nomeada pela presidência da República, talvez ninguém acreditasse, diante da situação em que vivia. Nós tínhamos dificuldades de ter alimentos na nossa casa, material escolar, uniforme, nem pensar! Quem conhece a história da minha vida sabe o que passei para estudar, desde pequena. Éramos cinco irmãos, nossa mãe era analfabeta, mas uma sabedoria ela sempre teve: é na escola que vou fazer com que os meus filhos tenham uma vida diferente. Então, ela fazia tudo para a gente estudar, embora tivéssemos que trabalhar o turno da escola era sagrado, e na nossa cabeça o estudo passou a ser o único caminho que nós tínhamos para mudar de vida; não havia outra saída, era estudar ou estudar; ou então permanecer onde estávamos”.
Desembargadora Zuíla Dutra
Reprodução / O Liberal
Os anos passaram, mas os ensinamentos de dona Oscarina, e o exemplo de vida da filha Zuíla Dutra, estão mais vivos do que nunca e servem para todos que sonham com uma vida melhor para si e para os seus.
Mais sobre Zuíla
Entre os muitos trabalhos realizados para conscientizar a sociedade sobre a importância de garantir a crianças uma infância digna, Zuíla Dutra organizou a 1ª Marcha de Belém contra o Trabalho Infantil, em parceria com a Juíza do Trabalho Vanilza de Souza Malcher. O evento foi realizada no dia 1º de março de 2015, e reuniu aproximadamente 30 mil pessoas, que foram às ruas da capital paraense manifestar indignação e repúdio contra o trabalho infantil.
Ao longo da carreira na magistratura, Zuíla Dutra já recebeu muitas homenagens. Em dezembro de 2021, em Brasília, a desembargadora foi condecorada pelos seus serviços prestados à sociedade e à Justiça do Trabalho, durante a cerimônia de outorga da Ordem do Mérito Judiciário do Trabalho, uma das maiores honrarias do Tribunal Superior do Trabalho (TST).
A desembargadora tem muitos trabalhos publicados em revistas especializadas, entre eles:
Trabalho infantil: um debate sobre gênero e raça – Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região – 2021.
Trabalho Infantil Doméstico: Até Quando? – Revista da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 15ª Região – 2010.
A formação do juiz do século XXI – Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região – 2010.
Os direitos humanos como processo de luta pela dignidade humana – Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região – 2008.
Limites da Autonomia Coletiva. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região – 2007.
Trabalho Escravo no Brasil ? Um olhar sobre a Amazônia – Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região – 2005.
Trabalho Infantil Doméstico aumenta no Pará – TRT da 9ª Região – 2014.
O intolerável trabalho infanto-juvenil doméstico e a inviolabilidade do lar – Revista Anamatra – 2010.
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