Mulheres Yanomami que vivem próximas a garimpo têm maior déficit cognitivo por contaminação com mercúrio, aponta estudo


Das 87 mulheres examinadas, 40,2% apresentaram alterações cognitivas causadas pela contaminação com o mercúrio usado por garimpeiros ilegais no maior território indígena do país. Pesquisa foi realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Instituto Socioambiental (ISA). Mulheres Yanomami passam por exames cognitivos
Fiocruz/Divulgação
Mulheres Yanomami de comunidades indígenas próximas a áreas de garimpo ilegal são as que mais apresentaram déficit cognitivo causado pela contaminação com mercúrio, é o que aponta o estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e do Instituto Socioambiental (ISA) divulgado nesta quinta-feira (4).
Ao todo, 154 indígenas (87 mulheres e 67 homens) com 11 anos ou mais passaram por consultas neurológicas para entender as consequências da contaminação pelo mercúrio usado na extração ilegal de minério na Terra Indígena Yanomami.
Segundo o estudo, 40,2% das mulheres examinadas apresentaram alterações cognitivas, como alterações em reflexos profundos, sensibilidade tátil e força, enquanto os dados apontam 20,9% para os homens.
Usado por garimpeiros para separar o ouro de outros sedimentos e, assim, deixá-lo “limpo”, o mercúrio é um metal altamente tóxico ao ser humano. Após ser usado pelos garimpeiros, o mercúrio é jogado nos rios, causando poluição ambiental. Assim, entra na cadeia alimentar dos animais e afeta diretamente a saúde da população, principalmente os povos tradicionais.
Como consequência, o mercúrio no organismo pode causar graves problemas de saúde que afetam o sistema nervoso (potencial neurotóxico). O metal líquido fica retido no organismo devido à capacidade de bioacumulação.
De acordo com a pesquisa, um dos efeitos da contaminação com o mercúrio em pessoas é a alteração no Sistema Nervoso Central, o que causa o déficit apontado no estudo.
“Em adultos, os sintomas incluem perda de sensibilidade, tremores, alterações na marcha, fraqueza, tontura, convulsões, déficits na visão e na audição, cefaleia, zumbido, gosto metálico na boca, distúrbios do sono, ansiedade, depressão, entre outros”, destaca a pesquisa.
Nas crianças, os problemas podem começar na gravidez. Se os níveis de contaminação forem muito elevados, podem ocorrer abortos ou o diagnóstico de paralisia cerebral, deformidades e malformação congênita. Além disso, as crianças mais novas podem desenvolver limitações na fala e na mobilidade.
Exposição de grávidas ao mercúrio preocupa
Ao g1, o vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami (HAY), Dário Kopenawa explicou que os efeitos do mercúrio nas mulheres já são conhecidos pelas comunidades. Para ele, o que mais preocupa as lideranças indígenas é a exposição de mulheres grávidas ao metal.
“As mulheres estão mais vulneráveis durante a gravidez, ninguém sabe muito efeitos do mercúrio na gravidez, mas pode ser absorvido e afetar a mãe e o bebê. O contato com o mercúrio pode levar a problemas neurológicos, respiratórios, de infecção e uterinos nas crianças”, disse o vice-presidente.
Dário relembra casos de crianças que nasceram com deformidades nas comunidades em 2021 e 2022. Para ele, isso está relacionado à contaminação por mercúrio.
“Há relatos de casos de crianças nascendo com deformidades e problemas de saúde devido à exposição materna ao mercúrio. Esses incidentes já ocorreram em comunidades como Palimiu e Maluca Papiu, com sintomas como queda de cabelo, coceira e infecções em mulheres, além de casos de bebês nascendo com malformações, como a ausência de braço e perna”.
As comunidades que participaram da nova pesquisa ficam às margens do Rio Mucajaí, um dos mais impactos pelo garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami. Localizada no Amazonas e em Roraima, o território abriga 31 mil indígenas, que vivem em 370 comunidades.
Pesquisadores coletaram amostras de cabelo
Fiocruz/Divulgação
➡️ O povo Yanomami é considerado de recente contato com a população não-indígena e se divide em seis subgrupos de línguas da mesma família, designados como: Yanomam, Yanomamɨ, Sanöma, Ninam, Ỹaroamë e Yãnoma.
🔎 As amostras foram coletadas em outubro de 2022 nas comunidades Caju, Castanha, Ilha, Ilihimakok, Lasasi, Milikowaxi, Porapi, Pewaú e Uxiú, todas na região do Alto Rio Mucajaí, onde vivem indígenas do subgrupo Ninam. A escolha das aldeias atendeu um pedido da Texoli Associação Indígena Ninam.
Além das alterações cognitivas, os indígenas também apresentaram danos em nervos nas extremidades, como mãos, braços, pés e pernas, com mais frequência.
Alto nível de contaminação por mercúrio
Pesquisadores da Fiocruz estiveram em comunidades na Terra Yanomami
Fiocruz/Divulgação
De acordo com o estudo, indígenas de nove comunidades da Terra Indígena Yanomami têm alto nível de contaminação por mercúrio. Ao todo, 94% dos indígenas que participaram da pesquisa estão contaminados pelo metal pesado.
O estudo coletou amostras de cabelo de 287 indígenas do subgrupo Ninam, do povo Yanomami, e revelou que os indígenas que vivem em aldeias mais próximas aos garimpos ilegais têm os maiores níveis de exposição ao mercúrio.
Das 287 amostras de cabelo examinadas, 84% registraram níveis de contaminação por mercúrio acima de 2,0 μg/g (micrograma). Outros 10,8% ficaram acima de 6,0 μg/g. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), os níveis de mercúrio em cabelo não devem ultrapassar 1 micrograma por grama.
“Esse cenário de vulnerabilidade aumenta exponencialmente o risco de adoecimento das crianças que vivem na região e, potencialmente, pode favorecer o surgimento de manifestações clínicas mais severas relacionadas à exposição crônica ao mercúrio, principalmente nos menores de 5 anos”, explica o coordenador do estudo, Paulo Basta, médico e pesquisador da Fiocruz.
Mercúrio usado em garimpos no Amapá
Ipen/Divulgação
O estudo “Impacto do mercúrio em áreas protegidas e povos da floresta na Amazônia: uma abordagem integrada saúde-ambiente” também realizou a coleta de células de mucosa oral, o que totalizou cerca de 300 pessoas analisadas.
Todos os examinados, incluindo homens, mulheres, crianças, adultos e idosos apresentaram níveis de mercúrio no corpo.
Além da detecção do mercúrio, a pesquisa fez exames clínicos para identificar doenças crônicas não transmissíveis, como transtornos nutricionais, anemia, diabetes e hipertensão.
Ao cruzar os dados, foi observado que, nos indígenas com pressão alta, os níveis de mercúrio acima de 2,0 μg/g são mais frequentes do que nos indígenas com pressão arterial normal.
As 9 comunidades analisadas (veja mapa abaixo), no entanto, não são as únicas afetadas pela contaminação por mercúrio.

Terra Yanomami
Com 9,6 milhões de hectares, a Terra Yanomami é considerada o maior território indígena do Brasil em extensão territorial e enfrenta uma crise sem precedentes, com casos graves de indígenas com malária e desnutrição severa.
O território é alvo do garimpo ilegal há décadas, mas a invasão se intensificou nos últimos anos. A atividade impacta diretamente o modo de vida dos povos originários, isto porque a invasão destrói o meio ambiente, causa violência, conflitos armados e poluição dos rios devido ao uso do mercúrio. Só em 2022, a devastação no território chegou a 54%.
Atividade garimpeira tem provocado a poluição dos rios na Terra Yanomami, conforme a HAY
© Bruno Kelly/HAY
Em janeiro do ano passado, o governo federal começou a criar ações para enfrentar a crise, com o envio de profissionais de saúde, cestas básicas e materiais para auxiliar os Yanomami. Além disso, forças de segurança foram enviadas para a região para frear a atuação de garimpeiros no território.
Mesmo com o enfrentamento, um ano após o governo decretar emergência, o garimpo ilegal e a crise humanitária permanecem na região.
O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) estima que cerca de sete mil garimpeiros ilegais continuam em atividade no território. O número de invasores diminuiu 65% em um ano, se comparado ao início das operações do governo federal, quando havia 20 mil invasores no território.
Intoxicação por mercúrio afeta 94% dos Yanomami
Em março deste ano, 600 indígenas, entre pacientes e acompanhantes, estavam vivendo na Casa de Saúde Indígena Yanomami (Casai), na capital Boa Vista. O local recebe os indígenas que estão com doenças mais graves e precisam receber atendimento de saúde dos hospitais na capital.
Na última terça-feira (2), o Profissão Repórter mostrou como um ano após a intervenção do Governo Federal, o garimpo e as doenças trazidas pelos invasores continuam sendo a maior ameaça para os Yanomami.
SAIBA MAIS:
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Profissão Repórter mostra situação dos Yanomami um ano após ação do governo
Recomendações
Pesquisa apontou que 84% dos indígenas têm alto nível de contaminação pelo metal
Fiocruz/Divulgação
Para evitar e controlar a situação, os pesquisadores recomendam ações emergenciais como a interrupção imediata do garimpo e do uso do mercúrio, desintrusão de invasores e a construção de unidades de saúde em pontos estratégicos do território indígena.
O estudo indica como necessárias três ações específicas para as populações expostas e potencialmente expostas ao mercúrio. São elas:
rastreamento de comunidades cronicamente expostas ao mercúrio, para a realização de diagnósticos laboratoriais tempestivos a fim de avaliar pessoas com quadros sugestivos de intoxicação por mercúrio já instalados;
elaboração de protocolos e rotinas apropriadas para diagnóstico e tratamento de pacientes com quadro de intoxicação por mercúrio estabelecido;
criação de um centro de referência para acompanhamento de casos crônicos e/ou com sequelas reconhecidas.
Outra recomendação é a atualização da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), que deve assegurar a presença regular de profissionais de saúde na região, além de investir na formação continuada de agentes indígenas de saúde.
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