Com voto contrário de Renan Bolsonaro, Câmara de Balneário Camboriú decide atualizar documentos de ex-prefeito morto na ditadura


Primeiro prefeito da cidade, Higino João Pio foi assassinado por agentes do estado e crime foi forjado como suicídio por militares. Certidão de óbito foi retificada como “morto pelo Estado”. Certidão de óbito de Higino João Pio
Rogerio Vasconcelos/Arte NSC
A Câmara de Vereadores de Balneário Camboriú, no Litoral Norte de Santa Catarina, vai atualizar os documentos sobre a morte do primeiro prefeito da cidade, Higino João Pio, morto pela ditadura militar em março de 1969. A alteração foi autorizada pelos parlamentares na terça-feira (25), após votação em plenário. Apenas o vereador Jair Renan Bolsonaro (PL) votou contra.
Marcos Augusto Kurtz (Podemos), presidente da casa, e Victor Forte (PL), segundo secretário do legislativo, não votaram.
✅Clique e siga o canal do g1 SC no WhatsApp
A mudança nos documentos do legislativo municipal busca corrigir as atas que registraram erroneamente que o político havia cometido suicídio na prisão, quando, na verdade, ele foi assassinado dentro da Escola de Aprendizes Marinheiros, em Florianópolis.
A atualização na Câmara acontece após a causa do óbito do político ter sido retificada na certidão. Consta no documento agora que a morte do prefeito foi “violenta, causada pelo estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática” na ditadura.
Certidão de óbito de Higino João Pio
Rogerio Vasconcelos/Arte NSC
Conforme investigações ao longo das últimas cinco décadas, após Pio ter sido morto, seu corpo foi colocado pendurado com arame no pescoço, amarrado na torneira e com os pés próximos ao chão, em uma cena de teatro montada (leia os detalhes do caso mais abaixo).
Conforme o requerimento 10/2025 aprovado na Câmara, a retificação das atas e a atualização da certidão “representam um marco crucial para o reconhecimento da verdade histórica e para a reparação dos danos causados à família e à sociedade de Balneário Camboriú”.
As atas serão corrigidas datam de 11 de março de 1969 e 10 de outubro de 1969. Após a correção, os documentos serão entregues aos familiares em sessão solene de homenagem ao ex-prefeito, marcada para segunda-feira (31).
O g1 procurou a assessoria de Renan Bolsonaro, mas não teve retorno até a última atualização desta reportagem. Segundo a assessoria do Legislativo, o presidente da casa só vota em situações específicas ou de desempate. Em relação ao vereador Vitor, ele não estava no momento da votação.
Câmara de Balneário Camboriú atualiza documentos após retificação da certidão de óbito de prefeito morto pela ditadura
Câmara de Vereadores de Balneário Camboriú/Divulgação
ATUALIZAÇÃO: Certidão foi atualizada como ‘causada pelo estado’
DEPOIMENTO: ‘A gente não esquece’, disse filho do prefeito morto
Mudança na certidão de óbito
A alteração na certidão de óbito aconteceu por determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que, em dezembro de 2024, solicitou as mudanças nas certidões de óbito das 434 pessoas assassinadas ou desaparecidas pelo regime no Brasil. Pio foi o único morto pelo regime em Santa Catarina.
Agora, o documento cita a perseguição sistemática à população identificada como dissidente política, durante o regime ditatorial instaurado em 1964.
Sepultamento com honras de estado
Além da retificação na causa da morte, João Higino Pio terá um sepultamento com honras de estado em Balneário Camboriú, o que não ocorreu em 1969. Os restos mortais serão transferidos da vizinha Itajaí, onde foi sepultado em um caixão lacrado por ordem dos militares, para a cidade onde foi prefeito.
O traslado vai acontecer em 20 de julho, data do aniversário de Balneário Camboriú, informou a prefeitura da cidade. A cerimônia terá presença de autoridades, como ex-prefeitos vivos, desfile em carro aberto, forças de segurança, familiares e protocolo fúnebre de estado.
Contexto histórico
Natural de Itapema, cidade vizinha a Balneário Camboriú, ele era hoteleiro e dono de terras, e tornou-se o primeiro prefeito eleito da cidade, em 1965, pelo Partido Social Democrático (PSD) na coligação com Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), assim que o município se descolou de Camboriú.
A prisão dele, quatro anos depois, foi justificada por supostas corrupções na administração, e que nunca foram provadas. A Comissão da Verdade concluiu que a causa do crime é atribuída a relação de amizade que ele tinha com ex-presidente João Goulart (PTB) e, em especial, a disputa política na região.
Morto pela ditatura, 1º prefeito de Balneário Camboriú terá certidão de óbito retificada
“Jango passava as férias em Balneário e tinha contato com o Higino. Quando ele foge, vira uma caçada às bruxas. Mas principalmente por causa das disputas locais dos políticos”, diz Anselmo Machado. Advogado, ele atuou na Comissão Estadual da Verdade Paulo Stuart Wright, em 2014, que contou com audiências na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) e ajudou a elucidar a morte do político.
A investigação estadual foi produzida em apoio à Comissão Nacional da Verdade (CNV), que realizou perícias para esclarecer as violações de direitos humanos que aconteceram na ditadura. O órgão concluiu que o catarinense “foi interrogado e mantido isolado” nas dependências da Escola de Aprendizes de Marinheiros, na Capital, e morreu “após estrangulamento, em ação perpetrada por agentes do Estado” , segundo consta o documento.
Certidão da verdade: 1º prefeito de Balneário Camboriú terá documento atualizado
Morte
Seu corpo foi colocado, “após a rigidez cadavérica haver se instalado”, pendurado com arame no pescoço, amarrado na torneira e com os pés próximos ao chão, em uma cena de teatro montada. A informação consta no relatório final da comissão, que tem mais de 1,9 páginas entre laudos, fotos e depoimentos.
Imagens mostram laudo forjado da morte do primeiro prefeito de Balneário Camboriú durante a ditadura
Arquivo Pessoal/Divulgação
Comissões
Os relatórios estadual e nacional das comissões são considerados marco na democracia do país. Em Santa Catarina, o trabalho concluiu que ao menos 698 pessoas sofreram lesões aos direitos humanos naquele período no estado. A principal vitória do grupo, porém, foi “desmentir a mentira criada em torno da morte do Higino”, resume Machado.
➡️ Além de reconhecerem a farsa do suicídio, as comissões recomendaram investigações para responsabilizar os operadores da morte do prefeito;
➡️ Em 2018, o Ministério Público Federal (MPF) apresentou uma denúncia de 327 páginas contra seis homens pelo crime, além do pedido de extinção de punibilidade de outros envolvidos em decorrência da morte deles. Denúncia caluniosa, sequestro e falso testemunho eram os crimes apontados;
➡️ Dois anos depois, em junho de 2020, o caso foi arquivado mesmo após recursos sob justificativa da Lei da Anistia. Até hoje, ninguém foi punido pelo assassinato do prefeito.
Reparação histórica
Mesmo com o arquivamento do caso na esfera criminal, a família busca reparação por meio de uma ação indenizatória contra a União. Em primeiro grau, a Justiça Federal reconheceu a causa da ação mobilizada pelos advogados da família Carlos Eduardo Serpa e Alexandre Blasi. A família, porém, buscou esferas superiores para aumentar o valor da sentença.
O processo agora aguarda recurso especial no Supremo Tribunal Federal (STJ).
✅ Clique e siga o canal do g1 SC no WhatsApp
VÍDEOS: mais assistidos do g1 SC nos últimos 7 dias
Adicionar aos favoritos o Link permanente.