Cortes de verba no combate ao HIV podem causar explosão de casos e milhões de mortes, diz estudo


Análise publicada na revista ‘The Lancet HIV’ alerta que cortes na ajuda internacional podem reverter progresso obtido nas últimas décadas na prevenção e no tratamento de HIV/AIDS. PrEP começou a ser oferecida pelo SUS em janeiro de 2018
Fábio Silva/Secretaria de Saúde de Contagem/Arquivo
Um novo estudo publicado na revista The Lancet HIV alerta que cortes na ajuda internacional podem anular décadas de progresso no combate ao HIV/AIDS, levando a um aumento significativo de infecções pelo vírus e de mortes relacionadas à doença.
Segundo a análise, a redução do financiamento internacional pode resultar em até 10,8 milhões de novas infecções e 2,9 milhões de mortes até 2030.
Os impactos mais graves devem ser sentidos em países de baixa e média renda, especialmente na África Subsaariana, onde programas financiados por iniciativas internacionais, como o Plano de Emergência do Presidente dos EUA para o Alívio da AIDS (PEPFAR), são responsáveis por grande parte do acesso a tratamentos antirretrovirais, testagem e prevenção do HIV.
Esses programas fornecem serviços essenciais, como terapia antirretroviral (TARV), testes de HIV e infraestrutura laboratorial. Além disso, auxiliam no fortalecimento dos sistemas de saúde, no treinamento de profissionais e na integração com outros serviços, como prevenção e tratamento da tuberculose e atendimento materno-infantil.
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Os impactos dos cortes no financiamento
Desde 2015, os doadores internacionais contribuíram com aproximadamente 40% de todo o financiamento do HIV em países de baixa e média renda. Cinco países — EUA, Reino Unido, França, Alemanha e Holanda — representam mais de 90% desse financiamento global. No entanto, esses governos anunciaram cortes substanciais, que podem reduzir em 24% os recursos internacionais destinados ao combate à AIDS até 2026.
Os EUA, maior contribuinte para a ajuda externa, suspenderam temporariamente todo o financiamento internacional em janeiro de 2025. A agência da ONU para a luta contra a AIDS (UNAIDS, na sigla em inglês) alertou que, caso os financiamentos não sejam restaurados ou substituídos, até duas mil novas infecções por HIV podem ser registradas por dia no mundo.
“Essa retirada repentina do financiamento norte-americano levou ao fechamento de várias clínicas e à demissão de milhares de trabalhadores da saúde (…). Tudo isso significa que esperamos um aumento nas novas infecções”, declarou Winnie Byanyima, diretora executiva da UNAIDS.
Ainda em janeiro, logo após a decisão do governo de Donald Trump, a Organização Mundial da Saúde (OMS) ressaltou que a medida põe em risco a vida de mais de 30 milhões de pessoas ao redor do mundo que dependem desses programas para acesso a terapias antirretrovirais essenciais.
“Essas medidas, se prolongadas, podem levar ao aumento de novas infecções e mortes, revertendo décadas de progresso e possivelmente levando o mundo de volta aos anos 1980 e 1990, quando milhões morriam de HIV a cada ano, incluindo muitos nos Estados Unidos”, afirmou a OMS em nota.
Debra ten Brink, coautora do estudo publicado na The Lancet HIV, reforça: “É fundamental garantir financiamento sustentável e evitar o ressurgimento da epidemia de HIV que pode ter consequências devastadoras, não apenas em regiões como a África Subsaariana, mas globalmente”.
Retrocesso nos avanços contra o HIV
Além do impacto imediato no fechamento de clínicas e na testagem, os cortes ameaçam reverter os avanços conquistados nas últimas décadas. A análise de modelagem matemática considerou diferentes cenários de redução do financiamento em 26 países. No pior deles, caso os cortes se mantenham e o PEPFAR seja descontinuado sem substituição, estima-se que:
o número de novas infecções aumente entre 1,3 e 6 vezes entre populações vulneráveis, como usuários de drogas injetáveis, trabalhadores do sexo e homens que fazem sexo com homens;
entre 770 mil e 2,9 milhões de pessoas podem morrer por complicações do HIV/AIDS;
programas de prevenção, como a distribuição de preservativos e oferta de profilaxia pré-exposição (PrEP), serão interrompidos primeiro, seguidos por testagem e tratamento.
De 2010 a 2023, países que receberam apoio do PEPFAR ou de outras iniciativas externas reduziram, em média, 8,3% das novas infecções por ano e 10,3% das mortes relacionadas ao HIV.
“Se essa tendência continuar, muitos países estarão no caminho certo para cumprir as metas globais de eliminar o HIV/AIDS como uma ameaça à saúde pública por volta de 2036”, afirmam os autores.
No entanto, se a ajuda externa for reduzida ou o PEPFAR for descontinuado, os pesquisadores alertam que as infecções e mortes podem retornar aos níveis de 2010, anulando completamente os avanços desde o ano 2000.
Mesmo que o financiamento seja restaurado após 12 a 24 meses, as infecções podem se estabilizar em níveis semelhantes aos de 2020, exigindo mais 20 a 30 anos de investimentos para que o HIV/AIDS deixe de ser uma ameaça à saúde pública.
Nick Scott, autor do estudo, ressalta que o financiamento doméstico dos programas de HIV precisa crescer. No entanto, essa transição exige planejamento estratégico e não acontece do dia para a noite.
“Nosso estudo destaca o quanto a colaboração e o investimento internacionais foram fundamentais para manter o progresso contra o HIV”, diz.
Os pesquisadores destacam algumas limitações do estudo, como a incerteza sobre o futuro do financiamento internacional para o HIV, incluindo o programa PEPFAR, e a possibilidade de medidas para mitigar os cortes. Além disso, os dados foram analisados em 26 países e depois projetados para outras nações de baixa e média renda, o que pode não refletir com precisão todas as realidades.
Eles também alertam que os impactos podem ser ainda mais graves do que os estimados, especialmente na África Subsaariana, onde problemas na cadeia de suprimentos e na infraestrutura de saúde podem agravar a crise.
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