
Juiz de São Paulo é acusado de usar identidade falsa por mais de 40 anos e ‘enganar instituições’; ele é investigado pelo Ministério Público do estado. O caso de um juiz aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo que usou um nome falso por mais de 40 anos e “enganou quase a totalidade das instituições públicas”, segundo denúncia do Ministério Público, levanta questionamentos sobre a validade das decisões proferidas por ele durante 23 anos na magistratura.
Especialistas e investigadores apontam que pode haver contestações na Justiça por parte de pessoas que se sentiram prejudicadas por algumas das milhares de decisões do magistrado.
Juiz de São Paulo é acusado de usar identidade falsa por mais de 40 anos
O juiz Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, de 67 anos, virou réu na Justiça paulista na última segunda-feira (31) sob acusação de ter praticado os crimes de falsidade ideológica e uso de documento falso.
Quem é o juiz?
De acordo com a acusação, a identidade verdadeira dele é José Eduardo Gomes dos Reis, nascido em 16 de março de 1958 em Águas da Prata (SP).
Em 1980, ele tirou pela primeira vez o RG com o nome inventado — que mais tarde ele diria ser proveniente da nobreza inglesa. Ao mesmo tempo, manteve em dia seus documentos com o nome verdadeiro.
Segundo a investigação da Polícia Civil de São Paulo, o juiz tinha dois RGs, dois CPFs, dois títulos de eleitor e passaporte com o nome de Wickfield, além de outros documentos com dados falsos, como carteira de trabalho e certificado de reservista.
Usando a identidade criada por ele, Reis estudou direito na Universidade de São Paulo (USP), onde se formou em 1992, prestou concurso para juiz e tomou posse em 1995.
Decisões podem ser contestadas?
O juiz “Wickfield” atuava na área cível, decidindo sobre disputas entre consumidores e empresas, ações contra jornalistas, questões de família, entre outros assuntos. Aposentou-se em abril de 2018 como juiz da 35ª Vara Cível do Fórum João Mendes, no centro de São Paulo.
“Materialmente, esse juiz cursou a faculdade, foi aprovado. Depois, fez um concurso, uma prova para a magistratura, ele mesmo, com os seus conhecimentos, e tem essa questão de uma troca de nome. Mas, materialmente, o conhecimento necessário, os requisitos necessários para o exercício do cargo, estão preenchidos”, disse ao Fantástico a professora de direito penal da FGV-SP Raquel Scalcon.
Para ela, as decisões proferidas pelo juiz devem ser mantidas. No entanto, o caso pode gerar discussões porque não há precedentes conhecidos.
“Acho que é bom que se coloque que pode haver opiniões diferentes nesse sentido, que alguém entenda que o ato de nomeação dele como juiz estaria maculado porque há o uso de um nome falso”, observa.
Os questionamentos sobre as decisões poderiam se agravar se a USP cassasse o diploma de “Wickfield” por causa do uso de identidade falsa para se matricular no curso. Um dos requisitos para ser juiz é ser bacharel em direito.
A percepção na USP, porém, é de que o caso ocorreu há muitos anos para gerar punições agora.
O juiz aposentado Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield na verdade se chama José Eduardo Franco dos Reis, segundo o MP
GloboNews/Reprodução
Como o caso foi descoberto?
Segundo a polícia e o Ministério Público, a farsa começou a desmoronar em 3 de outubro de 2024, quando o juiz foi ao Poupatempo Sé, no centro de São Paulo, tirar uma nova via do RG em nome de Wickfield.
As impressões digitais dele foram coletadas e comparadas eletronicamente no banco de dados da Polícia Civil. Essa comparação apontou indícios de que havia duas pessoas com marcas idênticas.
Os investigadores, então, passaram a analisar os documentos dessas duas pessoas e descobriram ser uma só.
Na análise documental, os investigadores notaram que as certidões de nascimento de Reis e de “Wickfield” tinham o mesmo número de registro no mesmo cartório do município de Águas da Prata, mas o restante dos dados era diferente.
Reis nasceu em 16 de março de 1958; “Wickfield”, em 10 de março daquele ano. Reis é filho de Natalina e José; “Wickfield”, de Anna Marie Dubois Vincent Wickfield e Richard Lancelot Canterbury Caterham Wickfield.
O cartório informou aos policiais que a certidão de nascimento de Reis está registrada no local, mas a de Wickfield não existe.
Enquanto os investigadores aprofundavam as análises sobre a suspeita de duplicidade, o sistema do Poupatempo foi bloqueado automaticamente e impossibilitado de emitir uma nova via do RG de Wickfield.
O juiz, então, foi informado de que deveria ir ao Instituto de Identificação para regularizar a situação — o que é praxe nos casos de suspeita de duplicidade, porque o sistema eletrônico pode se enganar.
Trabalho como artesão e ‘irmão gêmeo’
Ao chegar ao instituto em 2 de dezembro de 2024, o juiz foi interrogado pelo delegado Raphael Zanon da Silva. Ali, ele se apresentou como José Eduardo Franco dos Reis e disse trabalhar como artesão.
Afirmou também que Wickfield é seu irmão gêmeo, que foi dado para adoção ainda criança. Segundo essa versão, Wickfield cresceu na Inglaterra, procurou Reis quando ambos já eram adultos e veio passar uma temporada no Brasil.
Reis, então, teria ido ao Poupatempo para solicitar um RG para o suposto irmão gêmeo, que seria um professor, e não o juiz. Ele não explicou, contudo, por que resolveu utilizar suas impressões digitais para tirar o documento para o suposto irmão, porque mesmo irmãos gêmeos têm digitais diferentes.
Denúncia
A história não convenceu os investigadores. No final de fevereiro deste ano, o Ministério Público denunciou Reis pelos crimes.
A denúncia se refere somente a fatos mais recentes, como a tentativa de tirar RG com nome falso em outubro passado, porque os supostos crimes praticados no passado já prescreveram — ou seja, não há mais como o Estado punir Reis pelos episódios antigos.
O g1 busca contato com o juiz aposentado, mas não havia conseguido localizá-lo até a publicação desta reportagem.