
Em abril de 1988, piloto conseguiu trazer de volta ao chão um Boeing 737 que havia sofrido descompressão explosiva e tinha um rombo de 35 metros quadrados na cabine de passageiros. Uma comissária de bordo morreu ao ser sugada em pleno ar. Episódio mudou a forma como manutenção das aeronaves é feita em todo o mundo. O pouso milagroso do voo Aloha Airlines 243, que teve teto arrancado em pleno ar
Em um início de tarde de céu claro e pouco vento quando a torre de controle do aeroporto de Kahului, na ilha havaiana de Maui, recebeu a mensagem de “mayday” (emergência) de um avião da Aloha Airlines. Os controladores não sabiam, mas seriam personagens de uma das grandes histórias da aviação mundial.
No caso, a aeronave era uma velha conhecida: um 737-200 da Aloha Airlines que fazia vários voos curtos entre as ilhas do arquipélago todos os dias —e minutos antes, inclusive, já tinha pousado e decolado do Maui naquele 28 de abril de 1988.
A comunicação por rádio entre torre e tripulação não estava boa; havia muito barulho na cabine, e a copiloto atribuiu a emergência a uma perda súbita de pressurização, provavelmente pela abertura de uma das portas da aeronave.
A torre de Kahului não tinha muita ideia da gravidade da situação, mas deu prioridade ao pouso de emergência para o voo 243. Em um primeiro momento, o controlador não achou necessário nem acionar as ambulâncias do aeroporto.
Havia um indicativo de que a situação era mais séria: um pilotos pediu reforços médicos para um possível pouso de barriga (sem os trens de pouso), já que a luz do painel do 737 que indicava o engate das rodas dianteiras não havia acendido.
“Nós não temos o trem de pouso frontal”, disse a copiloto, via rádio. “Precisaremos de toda a estrutura que vocês tiverem.”
Mas nada poderia ter preparado quem estava no aeroporto para o que eles viram quando o Aloha 243 finalmente tocou o solo: não houve a perda de uma porta apenas, mas sim de 35 metros quadrados da fuselagem da cabine de passageiros, completamente arrancada, de uma lateral à outra do 737 (veja abaixo). Era possível ver um rasgo de 5,5 metros de um lado a outro entre a cabine passageiros e a asa, e passageiros presos à aeronave apenas pelos cintos de segurança.
Boeing 737-200 que fazia o voo Aloha Airlines 243 pousa sem o teto após uma descompressão explosiva
NTSB/Reprodução
Segundo especialistas, nunca na história uma aeronave comercial pousou com um dano estrutural tão grande.
Uma vez no chão, a situação ficou mais clara. Dos 94 ocupantes, 65 tinham ferimentos dos mais diversos tipos, oito estavam em estado grave, mas a maioria estava consciente. Todos estavam vivos. Havia um problema, porém: o avião havia decolado com 95 pessoas.
Inspeção noturna
Dentro da aeronave, poucos sinais haviam sido dados antes do incidente. Uma inspeção havia sido feita na aeronave ainda de madrugada, antes de o sol nascer e do primeiro voo do dia. Ela não encontrou nenhum problema. Naquela época, a FAA, órgão que fiscaliza a aviação civil nos EUA, não obrigava inspeções ou checagens visuais antes de cada decolagem, nem era este um procedimento adotado pela companhia.
O Boeing da Aloha Airlines era um dos mais antigos 737-200 em operação. Ele havia sido entregue em maio de 1969, com o número 152 na linha de montagem. A Aloha tinha 11 aviões que faziam majoritariamente voos curtos entre as ilhas do arquipélago, com um número alto de ciclos de decolagem e pouso.
O modelo em questão tinha 35.496 horas de voo e impressionantes 89.680 ciclos no momento do acidente – o segundo 737 com mais decolagens e pousos no currículo no mundo inteiro até aquele momento, perdendo apenas para um “irmão” da mesma companhia aérea.
O voo fatídico
Foram seis voos somente na manhã daquele dia. Em um deles, a tripulação foi trocada, e mais dois voos foram realizados. No voo fatídico, o comandante era o experiente Robert Schornstheimer, 44 anos, com a copiloto Madeline Tompkins, 36 anos, a seu lado. Três comissárias integravam a tripulação, e um controlador de voo estava no “jump seat”, um banco banco retrátil que fica na cabine de pilotagem.
O voo Aloha 243 ligava o aeroporto de Hilo, na ilha do Havaí, com destino à capital Honolulu, em O’ahu. O trajeto deveria ser feito em cerca de 50 minutos. Durante o embarque pela porta dianteira, uma passageira observou, um corte na fuselagem, na altura dos rebites, com sinais de corrosão. Seu testemunho está no relatório oficial do relatório sobre o acidente, feito pela NTSB (responsável por investigar acidentes aéreos no país), e se provou essencial para entender o ocorrido.
Boeing 737-200 da Aloha Airlines, nos anos 1970
Juerg Schmid/Wikimedia Commons
Tompkins seria a responsável por pilotar, enquanto o comandante Schornstheimer ficaria a cargo das comunicações. A decolagem ocorreu normalmente, às 13h25 locais.
A aeronave atingiria a altitude de cruzeiro a 7.300 metros, mais baixo que o normal —por se tratar de um voo muito curto, de menos de uma hora. A pouca duração também fazia com que as comissárias iniciassem o serviço de bordo ainda durante a subida, e o sinal de cinto de segurança afivelado permanecia aceso para os passageiros durante quase toda a rota.
Pânico a bordo e um altíssimo barulho de ‘whoooooooof!’
Quase imediatamente após atingir os 7.300 metros, apenas as comissárias não usavam cinto. Foi neste momento em que um barulho muito alto de algo se rasgando foi ouvido.
“Eu estava sentado três fileiras atrás de onde o rasgo terminava”, contou na ocasião o passageiro Stanford Samson ao jornal “New York Daily News”. “Tudo o que eu ouvi foi um altíssimo ‘whoooooooof!’ Olhei pra cima e só consegui ver o céu. Você não conseguia ouvir nem os próprios pensamentos. Você olha pra cima e vê o céu. Eu olhei pela janela e vi nuvens. Só Deus estava acima de nós.”
O que aconteceu foi uma descompressão explosiva que arrancou o teto e boa parte das laterais da fuselagem do 737. Um vento fortíssimo tomou conta da cabine, carregando fragmentos da aeronave, malas e até dinheiro, entre outros detritos. Muitos passageiros foram atingidos e feridos por eles. Outros bateram a cabeça no momento da explosão. O barulho tornava a comunicação quase impossível.
Uma comissária desaparece
Uma comissária, à frente do local afetado, foi jogada contra o chão e amparada por passageiros das primeiras fileiras, os mais expostos ao exterior. Outra funcionária, mais atrás,. se segurava nas poltronas e tentava fornecer auxílio aos passageiros. A terceira havia desaparecido.
Clarabelle Lansing, de 58 anos, estava de pé no corredor, na altura da fileira 5, logo acima da seção do teto que se abriu em pleno voo. Ela havia dedicado os últimos 37 anos à profissão e era a chefe do serviço de bordo do voo 243.
“Eu vi a comissária vindo em minha direção, de frente. Quando tudo explodiu, eu joguei minha cabeça para baixo e, quando levantei, ela não estava lá”, contou Samson em seu depoimento.
Ninguém viu Lansing, e nunca mais veria. A comissária foi ejetada em pleno voo. Nem seu corpo, nem parte alguma do 737 jamais foi retirado das águas do Pacífico, e ela foi declarada morta por presunção. Lansing foi homenageada com um memorial, na forma de um jardim, dentro do aeroporto de Honolulu.
Homenagem à comissária Clarabelle Lansing, morta do voo Aloha 243
Findagrave.com/Reprodução
Uma chance de sobreviver
O voo prosseguia. Michelle Honda, a comissária que estava menos ferida, não sabia se os pilotos haviam sido afetados, ou mesmo se eles estavam dentro do avião. Ela só desconfiou que havia uma chance de sobreviver quando percebeu que alguém estava conseguindo voar a aeronave, mesmo com um enorme rombo na fuselagem.
Boeing 737-200 que fazia o voo Aloha Airlines 243 pousa sem o teto após uma descompressão explosiva
NTSB/Reprodução
O pânico entre os passageiros contrastava com a situação na cabine de pilotagem: pilotos são treinados para encarar situações de emergência com procedimento e calma.
A copiloto Madeline Tompkins relatou ter ouvido a explosão e, ao olhar para trás, ver o céu onde deveria estar o teto sobre os assentos da primeira classe —na ocasião, havia primeira classe mesmo em voos domésticos, algo incomum na indústria atualmente .
Conversar era impossível, e ela e o comandante Robert Schornstheimer passaram a usar sinais para coordenar a ação entre si. E a primeira ação, praxe em emergências graves, era o comandante assumir a pilotagem —o que foi feito de forma imediata. (Pelas regras aeronáuticas, cabe ao piloto em comando a autoridade final, a responsabilidade pela operação e pela segurança do voo).
No ar rarefeito —e a ameaça de hipóxia
Ambos colocaram suas máscaras de oxigênio, e Schornstheimer apontou imediatamente em seguida o nariz do 737 para baixo. A 7 km de altitude o ar é muito rarefeito, com pouco oxigênio. No caso de perda de pressurização, deve-se levar a aeronave para um local da atmosfera onde seja possível respirar, sob pena de perda da consciência e morte por hipóxia.
Não fosse essa manobra de descida, os passageiros fatalmente morreriam: apesar de terem sido acionadas, as máscaras de oxigênio dos passageiros simplesmente não caíram —devido à perda de boa parte dos cabos.
Os manuais de pilotagem mandam que a descida seja executada o mais rápido possível, exceto quando há dano estrutural na aeronave. Isso porque não há como saber se o avião vai aguentar as forças aerodinâmicas exercidas se quando ele já está comprometido.
O comandante, no entanto, tomou uma decisão difícil: intuindo a urgência da situação, executou a manobra em uma velocidade relativamente alta, preocupado em pousar o quanto antes o 737.
Foi um desvio do procedimento, devidamente notado nas conclusões do relatório final do acidente: “O uso da velocidade de 280 a 290 nós (518 a 537 km/h) pela tripulação e de freios aerodinâmicos após a separação estrutural não considerou o ‘checklist’ apropriado de descida de emergência”.
Isso aumentou momentaneamente o ruído na cabine, que só diminuiu após alguns minutos —quando Tomkins finalmente conseguiu conversar com a torre de controle do Maui, no meio do caminho entre Hilo e Honolulu, para onde o comandante estava desviando o avião.
Avião ‘molenga’
Schornstheimer percebeu, segundo o relatório, que o avião parecia “molenga”, numa clara indicação de que havia um problema estrutural. Talvez nem ele, nem Tompkins tivessem percebido a gravidade do dano, e que uma separação total da cabine do restante da fuselagem pudesse ocorrer com qualquer movimento mais brusco.
De qualquer forma, o comandante testou uma configuração de flaps que pareceu deixar o 737 mais estável. Ele também optou, conscientemente, por manter a velocidade acima de 314 km/h, já que abaixo disso a aeronave tendia a ficar mais difícil de controlar.
Isso forçaria um pouso acima da velocidade máxima recomendada, mas a decisão foi vista posteriormente como acertada, mostrando a habilidade de Schornstheimer em ler corretamente os sinais em uma situação extrema e manter o avião sob controle.
Falhas notadas antes do pouso
Sua experiência foi essencial para o pouso no aeroporto de Kahului, localizado num vale entre duas montanhas em Maui – uma das quais o 737 precisou contornar para realizar a aproximação.
Duas falhas foram notadas antes do pouso: um dos motores havia parado de funcionar (consequência da ruptura de cabos pela descompressão), e a luz apagada de acionamento do trem de pouso dianteiro.
Usualmente, ao acionar o equipamento, uma luz verde no painel mostra que ele foi acionado, e uma luz vermelha aparece caso tenha havido algum problema. Mas a indicação permanecia apagada. Um pouso parcialmente “de barriga”, em um avião já comprometido, seria potencialmente fatal para a tripulação.
Foi apenas poucos instantes antes de tocar a pista que a torre de controle confirmou visualmente que, ao menos em relação ao trem de pouso, tudo estava ok: “Aloha dois quatro três, apenas para sua informação, o trem de pouso parece abaixado. Trem de pouso parece abaixado”.
Finalmente em solo
Treze minutos após a explosão, possivelmente uma eternidade para quem estava a bordo, o Aloha 243 tocou a pista. O pouso foi feito em segurança. Schornstheimer e Tompkins haviam salvado todas as vidas possíveis naquelas condições.
O trabalho da comissária Honda, que seguiu cuidando dos passageiros e executando seus deveres mesmo sem a certeza de que sobreviveria, também foi exaltado, inclusive pelo relatório final da NTSB.
Mas ainda era preciso saber o que havia ocorrido com o Boeing 737 da Aloha Airlines.
Ciclos e desgaste
A vida útil de uma aeronave não é medida apenas em horas de voo, mas também em ciclos. Cada pouso e decolagem, pressurização e despressurização, gera impactos e desgastes específicos na aeronave.
Modelos feitos para realizar mais ciclos, como os 737, são projetados de maneira diferente daqueles que realizam voos de longa duração, como os 777 ou os Airbus A350.
No caso, os 737 da Aloha Airlines eram alguns dos primeiros a terem saído da fábrica da Boeing, e costumavam realizar mais ciclos do que qualquer outra aeronave similar, em condições de muito calor e umidade, que agravaram alguns dos problemas de corrosão.
Isso, porém, não seria suficiente para explicar uma falha estrutural tão grave. A Boeing emitia boletins técnicos constantes para manutenção e aprimoramento da conservação do equipamento.
Acontece que a Aloha Airlines não tinha uma cultura organizacional que dava a atenção devida à manutenção e conservação dos aviões —nem a FAA (autoridade americana de aviação) exigia, na época, inspeções mais constantes.
Geralmente, nos hangares de Honolulu, as aeronaves da Aloha eram vistoriadas de madrugada, sem luz natural, e não ocorriam novas inspeções ao longo do dia, entre os voos. Por isso, passou batido pelos funcionários um sinal claro de corrosão da fuselagem, observado por uma passageira e que deveria ter obrigado a suspensão imediata do voo.
Mesmo assim, uma falha daquelas só ocorreu por uma questão específica da fabricação dos primeiros 737. As cerca de 200 primeiras aeronaves do modelo entregues usavam um tipo de material adesivo aplicado a frio nas placas da fuselagem, que servia para colar as placas da fuselagem e aliviar a pressão estrutural sobre os rebites. Esse composto tinha um processo complicado de aplicação, exigindo uma colocação muito rápida, precisa e sujeita a erros, em um local com baixíssima umidade.
Poucos anos depois, a Boeing revisou seu processo de fabricação e substituiu o material por um outro aplicado a quente, além de inserir uma terceira placa nas junções da fuselagem, para fortalecer a estrutura e evitar que a pressão fosse exercida nos rebites. Ela emitiu boletins para os operadores das primeiras aeronaves aconselhando revisões constantes e alertando sobre o risco de descolamento, especialmente em clima úmido.
O projeto dos 737 previa que, em último caso, se um dano estrutural semelhante ocorresse, ele ficaria circunscrito a uma pequena seção da fuselagem, abrindo um buraco de alguns centímetros durante o voo.
Isso ocorreria graças a uma outra camada de reforço na fuselagem. Haveria, sim, uma despressurização e a necessidade de um pouso de emergência, mas jamais uma decomposição tão grande da estrutura.
Um outro boletim da Boeing informava sobre a necessidade de manter esses reforços em bom estado, o que, supõe-se, a Aloha não fez.
O Aloha 243 trouxe lições valiosas para a indústria sobre fadiga de materiais e sobre como manter uma aeronave segura ao longo de toda a sua vida útil, e não seria exagero dizer que um acidente semelhante seria praticamente impossível de ocorrer depois.
Perícia e uma dose de sorte
Se, por um lado, o acidente só aconteceu devido a uma conjunção muito específica de fatores, não foi sem uma boa dose de sorte que ele conseguiu pousar com 94 sobreviventes.
Em primeiro lugar, a descompressão aconteceu num momento em que os passageiros ainda estavam com os cintos afivelados, ajudando a manter muitos deles presos à aeronave.
Além disso, o dano foi suficiente para danificar boa parte dos sistemas, mas os pilotos ainda mantiveram os controles da maioria das superfícies móveis, permitindo que eles pudessem manobrar a aeronave.
O comandante Schornstheimer, em que pese ser considerado um dos heróis da história —e com justiça—, fez uma aposta arriscada ao mergulhar o avião rapidamente após a despressurização. A alta velocidade poderia ter desintegrado a aeronave em pleno ar, segundo o relatório da NTSB.
Outro motivo de alívio foi o acionamento do trem de pouso dianteiro. Ao se preparar para um pouso de barriga ou apenas com os trens de pousos traseiros, em uma aeronave que já se encontrava muito frágil, a tripulação sabia que o procedimento poderia colocar em risco a vida de muitas das pessoas a bordo, inclusive a deles.
Por fim, o acaso parece ter dado as caras naquele dia de abril na ilha de Maui. Segundo o depoimento de um funcionário das equipes de emergência, a pista de Kahului, localizada no vale entre duas montanhas, costuma receber correntes de vento inconstantes vindas do Oceano Pacífico.
“O que é engraçado é que, no momento em que ele se aproximou, não havia vento”, disse Rodney Kilborn, ao programa de TV “Mayday: Desastres Aéreos”. “Eu acredito que, se estivesse ventando, a aeronave não teria chegado, ela teria se dividido em duas partes. É um milagre. É verdadeiramente um milagre.”
A história do Aloha virou um filme, “Voo 243: Pouso de Emergência”, lançado em 1990. O nome original em inglês dá ideia de como o caso ficou mundialmente conhecido: “Miracle Landing” (“O pouso milagroso”).
Voo Aloha Airlines 243
Thalita Ferraz/g1