
Eleito no colégio eleitoral, Tancredo seria o primeiro civil a presidir o país após 21 anos de ditadura. Internado na véspera da posse, passou por série de cirurgias e morreu em 21 de abril de 1985. Tancredo Neves não tomou posse, mas entrou para a história
Tancredo de Almeida Neves morreu há 40 anos, em 21 de abril de 1985, como presidente da República eleito. Não tomou posse no cargo, mas sua principal obra política foi executada com sucesso: a devolução do poder à população civil, encerrando duas décadas de ditadura militar (1964-1985).
Opositor do regime, Tancredo catalisou esperanças e conduziu a costura final da transição de poder.
“Articulador”, “arquiteto” e “fiador da redemocratização” são termos usados para descrever o político mineiro – um senhor calvo, estrategista, comunicativo, contador de causos e contrário aos extremos.
“A trajetória dele identifica o mais autêntico liberal, defensor permanente da democracia. Não foi a luta armada, não foi o radicalismo verborrágico de alguns políticos que conseguiram terminar com o governo militar. Foi a negociação política”, avalia o historiador Antônio Barbosa.
Escolhido pelo voto indireto para suceder o general João Figueiredo na Presidência da República, Tancredo foi hospitalizado na véspera da posse com fortes dores abdominais. Após sete cirurgias e 39 dias de uma agonia compartilhada com o país, morreu em São Paulo, aos 75 anos.
“Lamento informar que o excelentíssimo senhor presidente da República, Tancredo de Almeida Neves, faleceu esta noite, no Instituto do Coração [InCor], às 10 horas e 23 minutos [22h23]”, anunciou o porta-voz Antônio Britto, em um comunicado transmitido ao vivo para todo o Brasil.
Tancredo Neves, em foto de arquivo
Reprodução/TV Globo
Passadas quatro décadas, Britto acredita que falta ao Brasil buscar os consensos como ensinou Tancredo.
“Política é o exercício do diálogo e o diálogo é necessário quando se faz entre quem pensa diferente”, diz o ex-porta-voz.
Britto testemunhou a comoção nas ruas, com milhares de pessoas a acompanhar o périplo do esquife do presidente por São Paulo, Brasília, Belo Horizonte e São João del-Rei. Cenas de pessoas aos prantos e de semblantes desolados se replicaram pelo país.
Antonio Britto relembra anúncio da morte de Tancredo Neves
“A morte de Tancredo foi o centro dos acontecimentos que levaram, naquele instante, o Brasil à maior comoção da sua história”, afirma o ex-presidente José Sarney, que era vice na chapa de Tancredo.
Ex-aliado da ditadura, Sarney dirigia o governo desde 15 de março e assumiu em definitivo a tarefa de Tancredo: convocou a assembleia que redigiu a Constituição de 1988 e entregou, em março de 1990, o poder a Fernando Collor, o primeiro presidente eleito pelo voto direto desde 1960.
Ministro de Getúlio Vargas
Tancredo nasceu em 4 de março de 1910 em São João del-Rei, um dos 12 filhos de Francisco Paula Neves e Antonina de Almeida Neves.
Cresceu em uma família de comerciantes abastados, políticos e militares. Formou-se em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e voltou à sua cidade, onde se casou com Risoleta, com quem teve três filhos.
Tancredo iniciou a carreira política como vereador em São João del-Rei (1935-1937), foi deputado estadual (1947-1950) e deputado federal (1951-1953).
Tancredo Neves durante discurso, em foto de julho de 1984
Antonio Lúcio/Estadão Conteúdo/Arquivo
No Rio de Janeiro, então capital federal, foi nomeado ministro da Justiça do segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954). Estava no Palácio do Catete quando o presidente se matou com um tiro. Ouviu o estampido e se deparou com Vargas sem vida no quarto da ala residencial.
Primeiro-ministro
Tancredo foi aliado de Juscelino Kubitschek. Em 1955, auxiliou na tratativa que desarmou um golpe para impedir a posse do conterrâneo como presidente.
O político também foi secretário de finanças de Minas Gerais e, em 1960, perdeu a eleição para o governo estadual. Em seguida, foi escalado para resolver uma das maiores crises da República.
Em agosto de 1961, o presidente Jânio Quadros renunciou. Militares e adversários políticos do vice, João Goulart, se opuseram à posse, o impasse beirou o conflito armado e Tancredo foi enviado ao Uruguai, onde convenceu o novo presidente a aceitar o regime parlamentarista, que durou até 1963.
Tancredo foi primeiro-ministro de setembro de 1961 a junho de 1962, o mais alto cargo que exerceu em sua carreira.
Tancredo Neves, primeiro ministro de João Goulart, tem seu nome inscrito em termo de posse conjunto de 1961 Senado Federal
Agência Senado/Divulgação
Ditadura militar
Deputado outra vez, Tancredo estava no Congresso no dia 2 de abril de 1964, quando o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarou vaga a Presidência da República – mesmo com João Goulart no país.
🗣️ O mineiro esbravejou “canalha’, “canalha” contra a decisão que endossou o golpe.
“Ele defende a democracia, principalmente se você pensar que não fazia parte do bloco progressista ou dos grupos de esquerda que apoiam João Goulart”, destaca a historiadora Heloisa Starling.
🚫 A ditadura, com cinco generais como presidentes ao longo de 21 anos, foi marcada pela ausência de eleições diretas para presidente e pela repressão violenta, com cassações, censura à imprensa, tortura e assassinato de opositores e períodos de fechamento do Congresso.
Com a imposição do bipartidarismo, Tancredo ingressou no MDB, legenda contrária ao regime. Fez oposição dentro das regras da ditadura, desviando das cassações e criando pontes com militares.
“Ele acreditava que política é, antes de tudo, negociação. Negociação em que se avança e se retrocede, mas sem jamais se afastar dos seus princípios”, relata o historiador Antônio Barbosa.
Tancredo Neves não tomou posse, mas entrou para a história
Diretas Já
Tancredo se reelegeu deputado até conquistar uma cadeira no Senado, em 1978. Após a vitória, afirmou ao jornal “Folha de S. Paulo” que temia que radicalismos atrapalhassem o caminho até a democracia: “Temos que reunir uma poderosa aliança democrática, a fim de conjurar tais perigos”.
🗳️ Em 1982, Tancredo se elegeu governador de Minas Gerais. Apoiou a campanha das “Diretas Já”, pela volta da eleição direta para presidente, porém entendia que o caminho viável para vitória da oposição seria o voto indireto no colégio eleitoral, conforme relatou em 1983 ao “Jornal do Brasil”: “a campanha pelas diretas é necessária, mas lírica. E o PMDB necessita instrumentalizar-se para a negociação possível.”
🗳️ A emenda Dante de Oliveira, como ficou conhecida a proposta para determinar o voto direto na eleição de 1985, não obteve o quórum de aprovação, mas criou o ambiente pró-redemocratização.
“Tancredo tinha uma leitura que aquele era um movimento cívico de enorme potencial e havia se transformado no maior do Brasil. E essa mobilização popular toda das Diretas Já foi canalizada para o projeto da oposição de voltar ao poder”, explica o historiador Ronaldo Costa Couto.
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Vitória no colégio eleitoral
Tancredo se tornou o candidato da oposição. O deputado Ulysses Guimarães, uma das principais lideranças do PMDB, não tinha o mesmo trânsito com parlamentares governistas e enfrentava maior resistência de militares, muitos deles contrários à redemocratização.
Com o slogan “Muda Brasil. Tancredo Já”, a campanha contra o governista Paulo Maluf prosperou. O senador José Sarney trocou o PDS, aliado do regime, pelo MDB para ser o vice da chapa.
Composto por deputados, senadores e delegados dos estados, o colégio eleitoral se reuniu em 15 de janeiro de 1985 no plenário da Câmara dos Deputados. Foram 480 votos para Tancredo, contra 180 de Maluf.
Tancredo comemorou de mãos erguidas e entrelaçadas com Risoleta e Ulysses. Em seguida, discursou. Anunciou que aquela era a “última eleição indireta do país” e que vinha “em nome da conciliação” para “realizar urgentes e corajosas mudanças políticas, sociais e econômicas”.
O presidente eleito assumiu o compromisso de buscar uma nova Constituição, de combater à inflação e gerar empregos. Reconheceu o papel das Forças Armadas naquele momento de transição e defendeu a política e a democracia, pilares da Nova República que se anunciava.
“Reencontramos, depois de ilusões perdidas e pesados sacrifícios, o bom e velho caminho democrático. Não há pátria onde falta democracia”, disse.
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Internação às pressas e agonia de um país
A cerca de 12 horas da posse, marcada para manhã de 15 de março no Congresso, Tancredo foi internado no Hospital de Base, em Brasília, com dores abdominais. A equipe médica optou pela cirurgia.
Um país incrédulo acompanhou aquela saga. Antes da cirurgia foi divulgado que Tancredo sofria de apendicite aguda, diagnóstico mudado para diverticulite. Na verdade, a cirurgia retirou um leiomioma benigno, um tumor do intestino do presidente.
Duas décadas depois, em 2005, o Fantástico revelou que os médicos divulgaram o laudo falso diante do receio da cúpula do novo governo de que a transição fosse barrada pelos militares.
“O doutor Tancredo foi o fiador da transição. Foi uma transição negociada, e ele permitia unir os que lutavam pela democracia e obter apoios entre os que tinham participado do regime militar”, diz Antônio Britto.
Após uma madrugada de negociações, Sarney foi empossado vice e ficou como presidente em exercício. Último general a governar o país, João Figueiredo se recusou a passar a faixa por considerar Sarney um traidor.
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Nação em luto
A retirada do tumor não foi suficiente, e Tancredo foi operado novamente em Brasília.
Em 25 de março, posou para fotos ao lado de Risoleta e dos médicos. À noite, sofreu uma hemorragia no intestino.
O presidente foi transferido para o Instituto do Coração (InCor), em São Paulo. Submetido a outras cinco cirurgias, não reagiu e seus órgãos foram parando. Morreu em 21 de abril de 1985, Dia de Tiradentes, de “síndrome da resposta inflamatória sistêmica”, conforme revelou o Fantástico.
Multidões acompanharam o cortejo de Tancredo em São Paulo e Brasília. No dia 22 de abril, o artífice da redemocratização subiu a rampa do Palácio do Planalto em um caixão. Foi velado no prédio onde deveria estar governando.
O esquife ainda passou por Belo Horizonte antes do repouso no cemitério aos fundos da Igreja de São Francisco, em São João del-Rei. Um ano depois, Sarney sancionou a lei que deu a Tancredo status de ex-presidente.
Passados 40 anos, o vice alçado a presidente avalia que foi possível “construir uma engenharia política” para mostrar às diferentes forças políticas a importância da democracia e prosseguir com a transição.
“A democracia não morreu nas minhas mãos. Pelo contrário, ela floresceu”, celebra Sarney.
José Sarney (ao centro, de bigode preto) toma posse após morte de Tancredo Neves
Agência Senado