
Natascha Falcão (à esquerda) e Julia Vargas abordam os repertórios de Gal Costa (1945 – 2022) e Rita Lee (1947 – 2023) no show ‘LeeGal’
Michelle Castilho / Divulgação Circo Voador
♫ OPINIÃO SOBRE SHOW
Título: LeeGal
Artistas: Natascha Falcão e Julia Vargas
Data e local: 26 de abril de 2025 no Circo Voador (Rio de Janeiro, RJ)
Cotação: ★ ★ ★ ★
♬ LeeGal – show realmente legal que junta as cantoras Natascha Falcão e Julia Vargas em torno dos repertórios de Gal Costa e Rita Lee – desafia lógicas e contradiz tendências.
Shows com cancioneiros de artistas mortos geralmente embutem objetivos meramente mercantilistas. Quando se trata de reverenciar cantoras transformadas em saudades do Brasil, o risco é ainda maior de o tributo soar como karaokê trivial que tenta fisgar ouvintes pelas lembranças melancólicas de “tantos momentos bons”, para citar verso da canção eternizada na voz de Gal em gravação de 1983.
Nomes gigantes e já imortalizados no panteão da música brasileira, Maria da Graça Costa Penna Burgos (26 de setembro de 1945 – 9 de novembro de 2022) e Rita Lee Jones (31 de dezembro de 1947 – 8 de maio de 2023) têm sido alvos de sucessivos tributos desde que ambas saíram de cena. Vários logo sumiram na poeira da estrada. LeeGal – show que Natascha Falcão e Julia Vargas estrearam na noite de ontem, 26 de abril, como atração da abertura da (feliz) primeira apresentação de Simone no Circo Voador, palco mais jovial do Rio de Janeiro (RJ) – tem tudo para percorrer longo caminho.
Houve alma e houve verdade quando essas duas cantoras de vozes potentes e calorosas seguiram roteiro que promoveu a convergência dos desbundes de Gal e Rita.
Após o início conjunto no universo da Tropicália, quando Gal se consolidou como a musa do movimento de 1967 / 1968 e Rita se projetou como integrante (e a graça) do trio Os Mutantes, as duas artistas seguiram caminhos paralelos que somente se cruzaram quando Gal gravou rock de Rita com Luiz Carlini e Lee Marcucci, Me recuso, no álbum Caras & bocas (1977), 14 anos antes do reencontro em cena com a colega para dueto em Mania de você (Rita Lee e Roberto de Carvalho, 1979) em show de festival realizado em 1991.
Irmanadas na cena de LeeGal, inclusive pelos figurinos harmoniosos que citavam Gal e Rita nos acessórios (a flor no cabelo de Natasha e os óculos vermelhos de Julia), as cantoras mostraram que há muito mais em comum entre Gal e Rita do que o fato de as duas artistas terem se alternado no topo das paradas no binômio 1981 / 1982 em momentos de auge comercial.
Somente com o toque de duas afiadas guitarras, Julia Vargas (fluminense de Cabo Frio / RJ) e Natascha Falcão (pernambucana do Recife / PE) confirmaram a expressividade já conhecida por quem as viu em cena anteriormente.
Também bailarina e percussionista, Julia é cantora projetada em 2012 com álbum solo que sinalizou a afinidade da intérprete com a música rotulada como MPB. Também atriz, Natascha Falcão conseguiu visibilidade há dois anos com o álbum Ave mulher (2023), ao qual se seguiu o EP Universo da paixão (2024). Ambas vêm há anos tentando se fazer ouvir em um Brasil corroído pelo pop ralo vigente no mainstream do mercado musical.
Na estreia do show LeeGal, ambas mostraram que entendem o que cantam e puseram a potência vocal a serviço dos sentidos das músicas de roteiro que incluiu Esotérico (Gilberto Gil, 1976), Ando meio desligado (Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias, 1970) e Pagu (Rita Lee e Zélia Duncan, 2000), tema cantado no bis improvisado a pedido do público.
Houve um ou outro solo. Se Julia reviveu Caso sério (Rita Lee e Roberto de Carvalho, 1980), Natascha deu voz a Baby (Caetano Veloso, 1968). No entanto, na maior parte do tempo, o que se viu e ouviu foi a união de vozes, corpos e almas no canto de músicas como Vapor barato (Jards Macalé e Waly Salomão, 1971) – com direito a arroubos vocais aplaudidos pela plateia calorosa que esperava Simone – e Ovelha negra (Rita Lee, 1975), canção de espírito folk que se tornou há 50 anos um hino geracional de caráter atemporal.
Também atual pelo corrente contexto político do mundo, Vaca profana (Caetano Veloso, 1984) ressurgiu com ímpeto nas vozes das cantoras como um hino contra os caretas de Paris, New York, Rio de Janeiro e demais cidades e países em que é preciso enfrentar caretas e conservadores para tentar frear o avanço mundial da extrema direita em 2025, ainda que essa música de letra caleidoscópica não seja essencialmente uma canção de protesto.
Alocar lado a lado no roteiro o rock Agora só falta você (Rita Lee e Luiz Carlini, 1975) e Divino maravilhoso (Caetano Veloso e Gilberto Gil, 1968), canção tropicalista de espírito roqueiro e lutador, é sublinhar as afinidades entre Gal Costa e Rita Lee.
Gal tinha voz cristalina que podia cortar como lâmina luminosa. Rita tinha a voz suave de roqueira bossa nova. Atentas e fortes, ambas amplificaram as vozes, recorreram ao desbunde em anos de chumbo e usaram inclusive os corpos como armas sensuais para afrontar a moral social e o machismo vigentes.
É esse sentido político que engrandece LeeGal, show de força potencializada pelas almas e vozes resistentes de Natascha Falcão e Julia Vargas.
Natascha Falcão (à esquerda) e Julia Vargas na estreia do show ‘LeeGal’ no Circo Voador (RJ) na noite de 26 de abril
Michelle Castilho / Divulgação Circo Voador