
Récita de versos de Aldir Blanc, Antonio Cicero, Vinicius de Moraes e Vladimir Maiakóvski pontuam roteiro costurado por sambas de várias cadências. João Bosco estreia o show ‘Boca cheia de frutas’ na casa Vivo Rio, no Rio de Janeiro (RJ), na noite de ontem, 23 de março
Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio
♫ OPINIÃO SOBRE SHOW
Título: Boca cheia de frutas
Artista: João Bosco Quinteto
Data e local: 23 de maio de 2025 na casa Vivo Rio (Rio de Janeiro, RJ)
Cotação: ★ ★ ★ ★
♬ Ao abrir o show Boca cheia de frutas com Arquitetura de morar, tema orquestral apresentado por Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994) no mesmo álbum Urubu (1976) em que o maestro nacional expôs Saudade do Brasil, sublime peça sinfônica, João Bosco começou a construir roteiro que se alimenta da nostalgia de um país e das esperanças depositadas nesse mesmo Brasil, partindo do universo dos povos originários.
A construção foi erguida a partir do afro-indígena O canto da terra por um fio (João Bosco e Francisco Bosco) – apresentado no show sem a exuberância do single editado em dezembro de 2023 com monumental produção musical orquestrada por Jaques Morelenbaum – e seguiu pelo verde da floresta tingida com a dor do coração vermelho que move Caça à raposa (João Bosco e Aldir Blanc, 1974), música-símbolo dos eternos recomeços da odisseia humana.
Na turnê de rota nacional iniciada na noite de ontem, 23 de maio, na casa Vivo Rio, tendo como ponto de partida o Rio de Janeiro (RJ), cidade que desde 1971 abriga o artista mineiro nascido há quase 79 anos em Ponte Nova (MG), João Bosco é o líder de quinteto fantástico formado com Cristovão Bastos (teclados e arranjos), Guto Wirtti (baixo), Kiko Freitas (bateria) e Ricardo Silveira (guitarra).
A turnê é inclusive apresentada como sendo do João Bosco Quinteto. Fez sentido porque foi em grupo que Bosco mergulhou em Brasis profundos para emergir com as bases sólidas de um país em eterno recomeço.
Na construção desse Brasil, o artista revolveu as águas da orixá Oxum e de Dorival Caymmi (1914 – 2008), saudado em Doce (Roque Ferreira, 2008), canção linkada no roteiro com o samba Nação (João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio, 1982), em número que incluiu citação vocal do samba-enredo Heróis da liberdade (Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola e Manoel Ferreira – Império Serrano, Carnaval de 1969).
O show Boca cheia de frutas chegou em cena com sabor afro-tupi, evidenciado no medley que agregou o samba-enredo João do Pulo (João Bosco e Aldir Blanc, 1986) e o Clube da esquina 2 (Milton Nascimento, Márcio Borges e Lô Borges, 1972), música cantada com vocalizes, sem a letra apresentada em 1979 na voz de Nana Caymmi (1941 – 2025).
Inspirado pelo álbum Boca cheia de frutas (2024), lançado em 10 de maio do ano passado, o show homônimo resultou longo na estreia nacional, roçando as duas horas e meia, porque o roteiro foi entremeado por falas de Bosco sobre o repertório e por récitas de poemas.
Antes de cantar Vir-a-ser (João Bosco e Francisco Bosco, 2024) na mesma cadência de samba-canção que embalou E aí? (João Bosco e Aldir Blanc, 2024), por exemplo, o cantou recitou os versos da Poética I de Vinicius de Moraes (1913 – 1980).
Precedido pelo canto a capella de Tive sim (Cartola, 1968), samba-canção que depois seria citado no toque do piano de Cristovão Bastos, o canto de E aí? foi veículo para a exposição da saudade de Aldir Blanc (1946 – 2020), primeiro e fundamental parceiro letrista de João Bosco. Criador de delírios cariocas em versos imagéticos, Aldir foi saudado por Bosco com a récita da letra de Sonho de caramujo (2009), uma das últimas parcerias dos compositores.
Pontuado por histórias de parcerias e parceiros, o roteiro do show Boca cheia de frutas chegou à cena com costura bem feita. Antes de cantar Jade (1989), sucesso de tempo em que geralmente assinava sozinho música e letra, o cantor e compositor preparou o clima oriental dos xás e sheiks com a récita dos versos de As mil e uma aldeias (1997), música-título do álbum em que João apresentou a parceria com o filho Francisco Bosco, desde então o principal letrista da obra do artista.
Entre a dissolução (alardeada como natural) da parceria com Aldir em 1986 e a chegada de Francisco em 1997, João Bosco foi em 1991 para Zona de fronteira, álbum com músicas assinadas com dois grandes poetas letristas, Antonio Cicero (1945 – 2024) e Waly Salomão (1943 – 2003).
Desse disco, o cantor pescou Saída de emergência (João Bosco, Antonio Cicero e Waly Salomão, 1991) – música que surtiu pouco efeito no público da estreia carioca – após recitar os versos escritos por Cicero para o poema Guardar (1996) e a canção Granito (1991) como homenagem ao poeta que se retirou de cena em outubro do ano passado.
Contudo, o canto é apenas uma forma de João Bosco expressar a musicalidade imersa em universo particular. Nessa expressão, o músico é tão o mais importante do que o cantor. Até porque o violão de Bosco contém o mundo, e esse mundo abarca África, Minas Gerais e nações indígenas.
Foi friccionando esse universo afro-mineiro-carioca-tupi que o artista caiu em várias cadências do samba ao reviver Sinhá (João Bosco e Chico Buarque, 2011), ao balançar em Coisa feita (João Bosco, Paulo Emílio e Aldir Blanc, 1982), ao fazer o Carnaval com Dinossauros da Candelária (João Bosco e Francisco Bosco, 2024) – embutindo na folia a marchinha Quebra, quebra gabiroba (Plínio Brito, 1930) – e ao revolver a raiz africana em Odilê, Odilá (1986), parceria com Martinho da Vila. Tudo isso antes de fazer gemer O ronco da cuíca (João Bosco e Aldir Blanc, 1975).
“O mar da história é agitado”, bradou Bosco, citando verso do poeta Russo Vladimir Maiakóvski (1893 – 1930) no poema E então, que quereis?… antes de mergulhar em Corsário (João Bosco e Aldir Blanc, 1975), tal como fizera no álbum Bosco (1989) e no Acústico MTV (1992).
Veio então a catarse coletiva com O bêbado e a equilibrista (João Bosco e Aldir Blanc, 1979), samba que eternizou a desejada anistia de 1979, página feliz da história do Brasil, ao celebrar a volta ao país dos que tinham ido por imposição. Foi a deixa para que o público da casa Vivo Rio puxar o coro “sem anistia”, com o reforço do cantor, para protestar contra a indesejada anistia de 2025.
O show poderia ter acabado aí, com citação de Smile (Charles Chaplin, 1936) no violão, na introdução e no fecho do samba. E acabou mesmo. Mas teve o bis, catártico para quem ansiava por ver o artista cantando, com direito a falsetes, Bijuteria (João Bosco e Aldir Blanc, 1977) – joia ouvida na abertura da novela O astro (TV Globo, 1977 / 1978) – e desembrulhando mais uma vez Papel machê (João Bosco e José Carlos Capinan, 1984) para fazer a festa dos amantes dessa canção.
Entre saudades e esperanças do Brasil, João Bosco extasiou o público que sabe que todo show do artista é feito com o gagabirô próprio desse cantor, compositor e músico que mora dentro da casca do extraordinário violão.
João Bosco na estreia nacional da turnê do show ‘Boca cheia de frutas’
Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio
♪ Eis as músicas e citações do roteiro seguido por João Bosco em 23 de maio na estreia nacional do show Boca cheia de frutas na casa Vivo Rio, na cidade do Rio de Janeiro (RJ):
1. Arquitetura de morar (Antonio Carlos Jobim, 1976)
2. O canto da terra por um fio (João Bosco e Francisco Bosco, 2023)
3. Caça à raposa (João Bosco e Aldir Blanc, 1974)
4. Doce (Roque Ferreira, 2008)
5. Heróis da liberdade (Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola e Manoel Ferreira – Império Serrano, Carnaval de 1969) – citação
6. Nação (João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio, 1982)
7. João do Pulo (João Bosco e Aldir Blanc, 1986)
8. Clube da esquina 2 (Milton Nascimento, Márcio Borges e Lô Borges, 1972)
9. Poética I (Vinicius de Moraes) – récita do poema
10. Vir-a-ser (João Bosco e Francisco Bosco, 2024)
11. Tive sim (Cartola, 1968) – canto a capella
12. Sonho de caramujo (João Bosco e Aldir Blan, 2009) – récita da letra
13. E aí? (João Bosco e Francisco Bosco, 2024)
14. As mil e uma aldeias (João Bosco e Francisco Bosco, 1997) – récita da letra
15. Jade (João Bosco, 1989)
16. Guardar (Antonio Cicero, 1996) – récita de trecho do poema
17. Granito (João Bosco e Antonio Cicero, 1991) – récita da letra
18. Saída de emergência (João Bosco, Antonio Cicero e Waly Salomão, 1991)
19. Sinhá (João Bosco e Chico Buarque, 2011)
20. Coisa feita (João Bosco, Paulo Emílio e Aldir Blanc, 1982)
21. Dinossauros da Candelária (João Bosco e Francisco Bosco, 2024)
22. Odilê, Odilá (João Bosco e Martinho da Vila, 1986)
23. O ronco da cuíca (João Bosco e Aldir Blanc, 1975)
24. E então, que quereis?… (Vladimir Maiakóvski) – récita de trecho do poema
25. Corsário (João Bosco e Aldir Blanc, 1975)
26. O bêbado e a equilibrista (João Bosco e Aldir Blanc, 1979) – com citação de Smile (Charles Chaplin, 1936) no violão
Bis:
27. Bijuterias (João Bosco e Aldir Blanc, 1977)
28. Papel machê (João Bosco e José Carlos Capinan, 1984)